27 agosto 2009

não conheço este jornalista, mas ele fez uma boa crítica: Análise de 'Terrorista' e 'A Tal Guerreira', exibidos no 15º Vitória Cine Vídeo 04/12/2008 - 16h23 (Rodrigo de Oliveira - )TERRORISTA, de César Meneghetti e A TAL GUERREIRA, de Marcelo Caetano A manipulação como direito
Igual a quantos filmes "Terrorista" seria se mantivesse apenas o depoimento lúcido, emocionado e, no mais das vezes, já bastante cartografado pela história dos sobreviventes da luta contra a ditadura, igual a quantos filmes se não tivesse, exatamente, um cardápio de intervenções sobre este discurso que são só suas (ainda que baseada num universo gigantesco de referências)? A história de Percy Camargo Sampaio é feito muitas outras, professor militante que é preso, perseguido, exilado, vivendo na clandestinidade, perdendo amigos, família, identidades. Sua presença permanente diante da câmera, seu discurso que atravessa a totalidade do filme, estão ali para marcar o mínimo de diferença: por mais que seja uma história nascida de uma convulsão coletiva e compartilhada por milhares de outros perseguidos pela ditadura, é a própria figura única e ainda resistente de Percy que torna não sua história, mas o modo como ele mesmo a conta, algo digno de atenção e admiração. Uma admiração que esbarra num dos maiores problemas do documentário tradicional: quando Percy começa a chorar, se emocionar com as lembranças, deve a câmera perseguir a lágrima com um zoom, com uma aproximação, deve explorar essa imagem da comoção que se dá espontaneamente diante dela? "Terrorista" não resiste a isso, mas esta pequena intervenção ótica no registro é apenas um pequeno detalhe dentro de um grande painel de manipulações. E falamos aqui sem sentido pejorativo, mas literal mesmo: manipulação no sentido de que percebemos que César Meneghetti fez o filme "com as mãos", colocando e recolocando inserções gráficas, trechos de filmes clássicos sobre as ditaduras latino-americanas, áudio de discursos de políticos e militantes, num trabalho realmente manual. Espécie de tela contemporânea sobreposta à imagem documental mais conservadora, o filme que nasce dessa conjunção incorpora essa briga entre respeito cego e intromissão de maneira interessantíssima. A mais simples das inserções gráficas talvez seja a mais poderosa delas: usando o vermelho forte para colorir a tela e, eventualmente, esconder por completo a imagem ao vivo que se dá ali por trás, "Terrorista" se coloca, como nestes blocos de cor, entre a visão opaca da história e da memória e o trabalho ativo, obrigatoriamente manipulador, desse manancial de sentimentos e afetos.O caso de "A Tal Guerreira" é ainda mais curioso porque, em se tratando de um filme onde a montagem de duas narrativas paralelas oferece um sentido muito claro e bastante pessoal da relação que o diretor Marcelo Caetano mantém com ambas as fontes, o que mais ecoa pelas imagens é a tal da "ética do documentarista", para o qual a resposta mais rasteira e longe de atingir a verdade do filme seria a de que o diretor talvez tenha ido longe demais. Antes de sequer sabermos do que se trata, vemos o discurso do pai de santo de um terreiro que cultua Clara Nunes falar a respeito da natureza sagrada que a cantora assumiu após sua morte, e sobre esta fala o que vemos são homens fantasiados de orixás, dançando em câmera lenta, sem que nada na imagem (detalhada, com fundo preto) nos ofereça um senso de totalidade, alguma localização precisa daquele espetáculo. Mais adiante, quando o mesmo pai de santo falar da incorporação do espírito de Clara por uma série de médiuns, a montagem nos leva ao camarim de uma drag queen, que está justamente se vestindo de Clara Nunes para iniciar seu show - de onde, aliás, foram tiradas as imagens dos orixás anteriores, nada menos que gogo boys musculosos e seminus, participando de um show numa boate gay paulistana. A questão da verdade das incorporações (seja de um espírito numa celebração de umbanda, seja de um personagem numa celebração dionisíaca num palco) está ali posta, mas é menos pela verdade interior destas duas manifestações e mais pela verdade do seu próprio discurso que "A Tal Guerreira" se impõe. O culto à imagem de Clara Nunes é, também, um culto à própria idéia de se ter uma imagem viva e presente, representável e renovável ao gosto e segundos os métodos de quem queira fazê-lo. A televisão ligada no terreiro de umbanda, mostrando imagens das participações da cantora em programas de auditório, ou os clipes do YouTube no qual a "drag queen" diz sempre voltar, para relembrar os tiques e a composição de sua personagem real: são culturas que não vivem apenas da internalização da influência de Clara, das lições espirituais apreendidas da música e da vida da cantora, mas sobretudo de sua face externa, plástica, da dimensão física do mito. A visita anual do grupo de umbandistas ao túmulo da cantora, e as incorporações de pretos velhos feitas ali, lado ao lado dos restos mortais de Clara, são tão impressionantes quanto estranhamente naturais. O culto tem valor de exibição tanto quanto valor de exame religioso íntimo, e vive do espalhafato. "A Tal Guerreira" percebe essa cultura visual de maneira muito parecida ao que um dia o mestre do documentário etnográfico Jean Rouch fizera com um ritual de transe coletivo no interior da África em "Os Mestres Loucos". A carga emocional e o conteúdo de bizarrices é sensivelmente menor de lá para cá, mas os comentários dos diretores sobre as imagens são um tanto próximos. O de Jean Rouch era de um espanto (e um certo reacionarismo) em relação a um universo tão radicalmente bipartido, entre a realidade de pessoas comuns, operários e funcionários e vagabundos que, durante alguns dias, passavam à supra-realidade de personagens incorporados em um transe violento. Marcelo Caetano, mais contido, não deixa de manifestar sua relação ao mesmo tempo compreensiva e distante daquelas narrativas paralelas e tão intimamente ligadas. Mas se não é de espanto sua reação (e não há, diferente de Jean Rouch, uma narração do próprio cineasta sobre as imagens que denote mais claramente que aquele é um discurso pessoal), "A Tal Guerreira" organiza as imagens com tamanha precisão e firmeza de propósitos que não há como nós, espectadores, não nos espantarmos um pouco.