Paulo, eu e Preta em foto por Bete
no meio do ano de 1999, o paulinho ( paulo césar ruiz ) deixou comigo um disquete com textos seus. alguns foram publicados, alguns talvez sejam inéditos. Gostaria de poder mandar um abraço pra Fátima Odara e Ana Lívia, que eu conheci bebês e dizer a elas que estou publicando estas palavras em memória ao pai delas. Registrar a delicadeza e sabedoria desse grande escritor e pai de vocês. não são textos para crianças definitivamente. São textos fortes, alguns são engraçados, emocionantes. com certeza.
Porto do Recife - ou o onírico em prosaÉ bom ter alguém por perto, muito bom. Há tempo não recebo ninguém. Os homens se foram, ficaram apenas a solidão e este pequeno cômodo que você está vendo aqui. Não me sinto infeliz por isso, não me sinto mesmo. Confesso a você que já tive tudo o que quis na vida. Hoje posso parecer uma pessoa pobre, abandonada, mas eu acho que isso faz parte da vida. Já tive dinheiro, fama, essas coisas que as pessoas consideram importantes...E ainda hoje tenho uma coisa importante que pretendo oferecer às pessoas, aos jovens, em especial. Quando o porto ainda existia, pode acreditar, a minha casa era movimentada, eu não teria, com certeza, tempo para ficarmos assim, nesse bate papo, nessa introdução. Naquele tempo eu era a mulher mais procurada do Recife. Os homens me desejavam...alguns ainda me desejam, o que você acha disso? Eu sei que o anúncio no jornal não sugere intimidade, essas coisas, mas ficaremos bem, você vai ver. Haviam os estrangeiros, com aquelas línguas ininteligíveis...mas a língua do amor, do prazer, você deve saber, não é verdade, é universal... Os gregos eram os que mais me agradavam, felizes, festivos, apesar de, quando altos, com muitas doses na cabeça, eram ruidosos e, na maioria das vezes, me causavam problemas. Espantavam a freguesia, que eram homens finos, discretos, não gostavam de publicidade, principalmente quando a polícia se envolvia. Não que eles fossem briguentos, não é isso, mas por uma questão cultural, os brasileiros, acho que, por inveja, não suportavam o tipo de brincadeira que faziam. Quebravam pratos, copos, cantavam batendo nas mesas, eram divertidos...mas pagavam tudo, até um pouco mais...É uma longa história... Venha aqui, se aproxime, não tenha medo, deixa eu pegar em suas mãos, deixa eu tocar em você...Fique calmo...Eu sei que, quando se é jovem, a ansiedade é um animal selvagem que, com suas garras afiladas, corrói por dentro...É o medo que faz isso, o medo do desconhecido... Eu sei que você deve estar achando que eu sou uma velha estúpida falando desse passado que já não existe mais, logo agora, e que você não veio aqui para isso, mas, é preciso que se diga, a cidade hoje mudou muito, se desenvolveu, como dizem por aí, mas hoje é pior, as pessoas são mais tristes, apesar de vestidas com roupas coloridas, alegres, como essas que você está vestido, eu percebo, é isso que eu acho...eu vejo. Eu tinha um amigo jornalista, um galego, que passava muitas tardes comigo convesando e, ele, nunca quis fazer amor comigo, mas me pagava...É preciso entender o mundo para que a intimidade, as relações afetivas principalmente, possam ser completas...não sei se consigo explicar...Mas não importa... A televisão hoje é que faz as pessoas sonharem. No meu tempo não existiam essas coisas, essa fixação pelas imagens, é verdade que existia o cinema, mas era apenas diversão, simples entretenimento...As mulheres sonhavam um sonho possível...encontrar alguém carinhoso, atencioso, que pudesse lhe dar uma vida agradável, sem dificuldades...Hoje eu vejo que as moças ficaram, como direi, desorientadas, fascinadas por esses personagens que, na verdade, não existem, são puramente virtuais, superficialmente felizes, onde até o pobre, ao que parece, não é pobre na realidade, não tem dificuldades, não sofre, é tudo de mentirinha, mas o ser humano, mortal, não consegue discernir com racionalidade a realidade do imaginário, a arte da vida. A televisão parece que quer acabar com o sofrimento da alma humana, mas, na minha opinião, um pouco de sofrimento é sempre necessário...O sofrimento faz as pessoas pensarem mais, as tornam mais introspectivas, e, com isso, certamente, vivem mais os momentos alegres, que não são muitos, porque se estabelecem limites, parâmetros para a vida...E eu considero isso muito positivo. Você diz que isso está parecendo pessimismo causado por um incurável saudosismo. Não é isso. É claro que todas as pessoas que tiveram um passado intenso, bom, são saudosistas, é impossível não ser. Mas isso não quer dizer que eu deva ficar fazendo apologia desse passado que vivi, e posso te dizer que foi uma experiência única, que não deve significar, particularmente, nada a ninguém, não, isso não, mas como exemplo é fundamental, aliás a sua visita, hoje, à minha humilde casa, foi influenciada por esse passado que eu insisto em reviver, apesar de não querer que a sua experiência seja a minha, o que não seria possível... um indício de completa ignorância...e eu não me considero uma pessoa ignorante, apesar de também não ser uma intelectual, uma pensadora, mas tenho meus instintos e eles, desde que eu me conheço por gente, têm me conduzido satisfatoriamente por esse mundo de Deus e, posso te garantir, nunca tive um engano assim... significativo, desses enganos que marcam...isso não... Você quer se deitar em meu colo? Venha, fique à vontade, deite-se aqui nos meus joelhos, quando foi mesmo a última vez que eu tive alguém, um homem, em meu colo...faz muito tempo, muito tempo...mas isso vai mudar, e você é a materialização disso... Há histórias muito engraçadas na vida da gente...quando eu ia me aposentar pelo INPS, nem sei se era INPS, essas coisas mudam todos os dias, e, também, isso não tem muita importância...Então, quando eu ía pedir a minha aposentadoria me perguntaram a profissão e, eu, com a maior sinceridade do mundo - uma coisa eu posso te garantir: eu sempre fui uito sincera, às vezes isso até me prejudicou em algumas oportunidades - respondi que tinha sido prostituta por mais de 30 anos...E não é o tempo de trabalho necessário para se aposentar...E a moça lá do guichê da Rua Corredor do Bispo me disse que prostituta não é profissão, e que, portanto, eu não poderia me aposentar. Eu, no primeiro momento, fiquei um pouco decepcionada, magoada mesmo com aquela indiferemça, uma ponta de lágrima surgiu em meus olhos, mas, depois de alguns minutos, recobrei a razão e quis argumentar com a moça, coitada, acho que por pura ignorância não sabia que a prostituição era a profissão mais antiga no mundo, inclusive com o especial status de estar na bíblia sagrada, coisa que muitos engenheiros, advogados não têm o privilégio...Ela sorriu e me disse que, infelizmente, não poderia concordar com o meu argumento, e me solicitou alguns documentos que chamou de “comprobatórios”- palavra bonita, achei - inclusive me pediu a carteira de trabalho para comprovar a minha atividade e eu, espantada, respondi que não tinha uma carteira de trabalho...onde já se viu uma puta com uma carteira de trabalho assinada, pensei, rindo, comigo mesma, quem seria o meu patrão, os homens, todos eles, os meus queridos homens que amei muito - o fato mais curioso que podia ter me acontecido nesses últimos anos... Me aposentei, claro, mas não foi muito bom para mim, psicologicamente falando. Não me sinto diferente de quando eu tinha trinta anos de idade e era muito atraente, como já mencionei, e posso te garantir que,hoje, continuo muito viva ainda, apesar da aparência um pouco desgastada...Mas os tempos mudaram muito e hoje a concepção do meu trabalho não é a mesma de vinte anos atrás, apesar de, enquanto prostituta que sou, com muita honra, esta nova fase é uma interrogação para mim, não tenho nem idéia o que pode acontecer, por isso resolvi publicar o meu endereço nos jornais aqui do Recife, oferecendo os meus serviços, e, graças a isso, você está aqui, o meu primeiro cliente, o meu primeiro jovem ainda em flor querendo o meu calor, as minhas carícias, enfim a minha vida... Você nunca imaginaria, se eu não te revelasse, que eu tenho mais de cinquenta anos, imaginaria? Claro que não. As mulheres quando aprendem a viver a essência da natureza dificilmente envelhecem e, eu, graças a Deus, aprendi muito bem controlar os meus impulsos, a minha energia... Venha aqui para a cama, venha! Não faça isso...Os homens sempre se precipitando... Deixe que eu tire a sua roupa, querido, não se preocupe ... Para tirar a roupa de um homem, é preciso muita concentração, pois, na verdade, é um ritual, uma fase importante do prazer, da sedução...Ah, se as mulheres soubessem disso...a minha profissão talvez perdesse a utilidade...Assim, fique assim, bem quietinho, eu vou fazer você o pequeno homem mais feliz do mundo, as suas futuras namoradas vão ser muito gratas a mim...mas, por favor, não vai sair por aí dizendo que você aprendeu o que eu vou te ensinar com uma prostituta... Não seria nobre...Sobre essas coisas não se fala com ninguém... Você está gostando? Nem precisa me responder, vejo nos seus olhos, o brilho está me dizendo o que milhões de palavras não conseguiriam traduzir...Isso me dignifica. Se você quiser pode voltar outras vezes...Traga alguns amigos...Quando a janela do quarto estiver aberta estarei livre, do contrário volte pra casa e volte um outro dia. Eu estarei sempre esperando você...pode ir...Você está feliz? Aceita um cigarro? Ah, você não fuma. É a moda...hoje os jovens não fumam mais...Eu sou do tempo em que fumar significava, pricipalmente se fosse uma mulher, poder, status, superioridade...Os tempos mudaram...Volte.