07 fevereiro 2007

Crônicas do Paulo César Ruiz amado amigo

Paulo, eu e Preta em foto por Bete

no meio do ano de 1999, o paulinho ( paulo césar ruiz ) deixou comigo um disquete com textos seus. alguns foram publicados, alguns talvez sejam inéditos. Gostaria de poder mandar um abraço pra Fátima Odara e Ana Lívia, que eu conheci bebês e dizer a elas que estou publicando estas palavras em memória ao pai delas. Registrar a delicadeza e sabedoria desse grande escritor e pai de vocês. não são textos para crianças definitivamente. São textos fortes, alguns são engraçados, emocionantes. com certeza.

Porto do Recife - ou o onírico em prosa
É bom ter alguém por perto, muito bom. Há tempo não recebo ninguém. Os homens se foram, ficaram apenas a solidão e este pequeno cômodo que você está vendo aqui. Não me sinto infeliz por isso, não me sinto mesmo. Confesso a você que já tive tudo o que quis na vida. Hoje posso parecer uma pessoa pobre, abandonada, mas eu acho que isso faz parte da vida. Já tive dinheiro, fama, essas coisas que as pessoas consideram importantes...E ainda hoje tenho uma coisa importante que pretendo oferecer às pessoas, aos jovens, em especial. Quando o porto ainda existia, pode acreditar, a minha casa era movimentada, eu não teria, com certeza, tempo para ficarmos assim, nesse bate papo, nessa introdução. Naquele tempo eu era a mulher mais procurada do Recife. Os homens me desejavam...alguns ainda me desejam, o que você acha disso? Eu sei que o anúncio no jornal não sugere intimidade, essas coisas, mas ficaremos bem, você vai ver. Haviam os estrangeiros, com aquelas línguas ininteligíveis...mas a língua do amor, do prazer, você deve saber, não é verdade, é universal... Os gregos eram os que mais me agradavam, felizes, festivos, apesar de, quando altos, com muitas doses na cabeça, eram ruidosos e, na maioria das vezes, me causavam problemas. Espantavam a freguesia, que eram homens finos, discretos, não gostavam de publicidade, principalmente quando a polícia se envolvia. Não que eles fossem briguentos, não é isso, mas por uma questão cultural, os brasileiros, acho que, por inveja, não suportavam o tipo de brincadeira que faziam. Quebravam pratos, copos, cantavam batendo nas mesas, eram divertidos...mas pagavam tudo, até um pouco mais...É uma longa história... Venha aqui, se aproxime, não tenha medo, deixa eu pegar em suas mãos, deixa eu tocar em você...Fique calmo...Eu sei que, quando se é jovem, a ansiedade é um animal selvagem que, com suas garras afiladas, corrói por dentro...É o medo que faz isso, o medo do desconhecido... Eu sei que você deve estar achando que eu sou uma velha estúpida falando desse passado que já não existe mais, logo agora, e que você não veio aqui para isso, mas, é preciso que se diga, a cidade hoje mudou muito, se desenvolveu, como dizem por aí, mas hoje é pior, as pessoas são mais tristes, apesar de vestidas com roupas coloridas, alegres, como essas que você está vestido, eu percebo, é isso que eu acho...eu vejo. Eu tinha um amigo jornalista, um galego, que passava muitas tardes comigo convesando e, ele, nunca quis fazer amor comigo, mas me pagava...É preciso entender o mundo para que a intimidade, as relações afetivas principalmente, possam ser completas...não sei se consigo explicar...Mas não importa... A televisão hoje é que faz as pessoas sonharem. No meu tempo não existiam essas coisas, essa fixação pelas imagens, é verdade que existia o cinema, mas era apenas diversão, simples entretenimento...As mulheres sonhavam um sonho possível...encontrar alguém carinhoso, atencioso, que pudesse lhe dar uma vida agradável, sem dificuldades...Hoje eu vejo que as moças ficaram, como direi, desorientadas, fascinadas por esses personagens que, na verdade, não existem, são puramente virtuais, superficialmente felizes, onde até o pobre, ao que parece, não é pobre na realidade, não tem dificuldades, não sofre, é tudo de mentirinha, mas o ser humano, mortal, não consegue discernir com racionalidade a realidade do imaginário, a arte da vida. A televisão parece que quer acabar com o sofrimento da alma humana, mas, na minha opinião, um pouco de sofrimento é sempre necessário...O sofrimento faz as pessoas pensarem mais, as tornam mais introspectivas, e, com isso, certamente, vivem mais os momentos alegres, que não são muitos, porque se estabelecem limites, parâmetros para a vida...E eu considero isso muito positivo. Você diz que isso está parecendo pessimismo causado por um incurável saudosismo. Não é isso. É claro que todas as pessoas que tiveram um passado intenso, bom, são saudosistas, é impossível não ser. Mas isso não quer dizer que eu deva ficar fazendo apologia desse passado que vivi, e posso te dizer que foi uma experiência única, que não deve significar, particularmente, nada a ninguém, não, isso não, mas como exemplo é fundamental, aliás a sua visita, hoje, à minha humilde casa, foi influenciada por esse passado que eu insisto em reviver, apesar de não querer que a sua experiência seja a minha, o que não seria possível... um indício de completa ignorância...e eu não me considero uma pessoa ignorante, apesar de também não ser uma intelectual, uma pensadora, mas tenho meus instintos e eles, desde que eu me conheço por gente, têm me conduzido satisfatoriamente por esse mundo de Deus e, posso te garantir, nunca tive um engano assim... significativo, desses enganos que marcam...isso não... Você quer se deitar em meu colo? Venha, fique à vontade, deite-se aqui nos meus joelhos, quando foi mesmo a última vez que eu tive alguém, um homem, em meu colo...faz muito tempo, muito tempo...mas isso vai mudar, e você é a materialização disso... Há histórias muito engraçadas na vida da gente...quando eu ia me aposentar pelo INPS, nem sei se era INPS, essas coisas mudam todos os dias, e, também, isso não tem muita importância...Então, quando eu ía pedir a minha aposentadoria me perguntaram a profissão e, eu, com a maior sinceridade do mundo - uma coisa eu posso te garantir: eu sempre fui uito sincera, às vezes isso até me prejudicou em algumas oportunidades - respondi que tinha sido prostituta por mais de 30 anos...E não é o tempo de trabalho necessário para se aposentar...E a moça lá do guichê da Rua Corredor do Bispo me disse que prostituta não é profissão, e que, portanto, eu não poderia me aposentar. Eu, no primeiro momento, fiquei um pouco decepcionada, magoada mesmo com aquela indiferemça, uma ponta de lágrima surgiu em meus olhos, mas, depois de alguns minutos, recobrei a razão e quis argumentar com a moça, coitada, acho que por pura ignorância não sabia que a prostituição era a profissão mais antiga no mundo, inclusive com o especial status de estar na bíblia sagrada, coisa que muitos engenheiros, advogados não têm o privilégio...Ela sorriu e me disse que, infelizmente, não poderia concordar com o meu argumento, e me solicitou alguns documentos que chamou de “comprobatórios”- palavra bonita, achei - inclusive me pediu a carteira de trabalho para comprovar a minha atividade e eu, espantada, respondi que não tinha uma carteira de trabalho...onde já se viu uma puta com uma carteira de trabalho assinada, pensei, rindo, comigo mesma, quem seria o meu patrão, os homens, todos eles, os meus queridos homens que amei muito - o fato mais curioso que podia ter me acontecido nesses últimos anos... Me aposentei, claro, mas não foi muito bom para mim, psicologicamente falando. Não me sinto diferente de quando eu tinha trinta anos de idade e era muito atraente, como já mencionei, e posso te garantir que,hoje, continuo muito viva ainda, apesar da aparência um pouco desgastada...Mas os tempos mudaram muito e hoje a concepção do meu trabalho não é a mesma de vinte anos atrás, apesar de, enquanto prostituta que sou, com muita honra, esta nova fase é uma interrogação para mim, não tenho nem idéia o que pode acontecer, por isso resolvi publicar o meu endereço nos jornais aqui do Recife, oferecendo os meus serviços, e, graças a isso, você está aqui, o meu primeiro cliente, o meu primeiro jovem ainda em flor querendo o meu calor, as minhas carícias, enfim a minha vida... Você nunca imaginaria, se eu não te revelasse, que eu tenho mais de cinquenta anos, imaginaria? Claro que não. As mulheres quando aprendem a viver a essência da natureza dificilmente envelhecem e, eu, graças a Deus, aprendi muito bem controlar os meus impulsos, a minha energia... Venha aqui para a cama, venha! Não faça isso...Os homens sempre se precipitando... Deixe que eu tire a sua roupa, querido, não se preocupe ... Para tirar a roupa de um homem, é preciso muita concentração, pois, na verdade, é um ritual, uma fase importante do prazer, da sedução...Ah, se as mulheres soubessem disso...a minha profissão talvez perdesse a utilidade...Assim, fique assim, bem quietinho, eu vou fazer você o pequeno homem mais feliz do mundo, as suas futuras namoradas vão ser muito gratas a mim...mas, por favor, não vai sair por aí dizendo que você aprendeu o que eu vou te ensinar com uma prostituta... Não seria nobre...Sobre essas coisas não se fala com ninguém... Você está gostando? Nem precisa me responder, vejo nos seus olhos, o brilho está me dizendo o que milhões de palavras não conseguiriam traduzir...Isso me dignifica. Se você quiser pode voltar outras vezes...Traga alguns amigos...Quando a janela do quarto estiver aberta estarei livre, do contrário volte pra casa e volte um outro dia. Eu estarei sempre esperando você...pode ir...Você está feliz? Aceita um cigarro? Ah, você não fuma. É a moda...hoje os jovens não fumam mais...Eu sou do tempo em que fumar significava, pricipalmente se fosse uma mulher, poder, status, superioridade...Os tempos mudaram...Volte.

Pardal, de Paulo César Ruiz

Branquinha Para você!!! Sentadinha no banco da praça, diante apenas de deus, ela mostrava os tornozelinhos torneados, e um colarzinho, ali, íntimo. Vozes em minha mente fustigando, volição. As nuvens, em pétalas abertas, dando licença ao sol, o ambarino voyeur. Cada movimento dos pelinhos da perna dela, cada ventinho, cada, um Cézzane, um Gauguin, quem saberá? No último domingo tomamos vinho português. Aquele dia, um sonho, não o esquecerei jamais. Os caquis sobre a mesa, no porta-frutas, seus lábios. Bagas doces bagas vermelhas - bagas capazes de ferir de morte o coração mais duro, só ao mordiscar, lambiscar, iscar, tudo. E que olhar... Fico atordoado só de pensar. Cada gole do vinho, suas faces mexiam-se num balé frenético, ruborizando, e os caquis-lábios me cutucando os sentidos, onde coloco as mãos: sobre a mesa, no bolso, onde, meu deus? O que está acontecendo com os meus joelhos?! - Talvez Dostoiévski tenha entrado fundo, tão fundo, na alma do ser humano, que, no final, não conseguiu se distanciar dos personagens que criou. Ela disse. Nem Kraus nem Nietzsche acreditariam. Mas a frase me é tão insignificante que nem prestei a atenção. Tinha outros assuntos para pensar. Sua delicadeza, sensibilidade, não fragilidade, seu perfume que enchia a sala de meus pulmões com aquela fragrância doce-juvenil. Descrever-lhe a beleza, a harmonia de sua anatomia? Seria pretensão. Teria que inventar palavras novas. Um pardal cantavadiando sobre nossa cabeça, na árvore que faz sombra no banco da praça onde, depois de muito, velho, experiente (será?), comecei a viver. A pardoca só olhava, de esguelha, lúbrica. A carta que me escreveu com uma letrinha toda barroca, traço preciso, com detalhes imprevisíveis a respeito da pintura de Van Gogh. O pintor, escreveu, foi vítima de sua família. Vindo da escola, com passinhos miúdos, a saia até o tornozelo. Abraça o caderninho como se fosse um passarinho com frio no inverno rigoroso. O seu trotezinho de puro sangue faz a bundinha balançar, saliente. Nenhum homem à sua frente. Todos, estrategicamente, quando estão adiantados, param para amarrar os sapatos, apanhar uma flor. Todos conferem à distância. Sonham. De seu pescocinho voam flechas perfumadas, coloridas, sobre o desespero masculino. Ela sabe disso. Descobriu-se sozinha, sem ajuda. Está adorando o seu último esporte: matar, com a beleza, homens do coração. Aliás, esporte essencialmente feminino, preferido por todas (as belas). Nos finais de semana, usa calças apertadas, pretas ou azuis e parece também que fuma um pequenino cachimbo...nem sempre com tabaco. Como invejo este cachimbo! Daria a vida para chegar próximo daqueles caquis. Nas tardes, viro um vampiro. Não o de Curitiba, claro, apesar da semelhança. Nunca vou desistir. Ontem escrevi uma carta, que não vou mandar. Preferi, mais pragmático, falar diretamente. Passei a noite decorando o texto. Planejo persuadi-la a me seguir até o rio. No ônibus: finge que não me vê. Está indo para o centro. Toda de branco. Um lírio. Os cabelos ainda molhados, curtinhos, castanhos, o pescocinho insinuante, arguto, à mostra, desembocando na camiseta; penso enxergar um pouquinho da pele de suas costas. Vejo só as penugens. Observo de longe: seu vício: roer as unhas. Minúsculos pedaços do esmalte nácar precipita-se para a sua lingüinha vermelha, uma ostrazinha, que imagino... Usa uma sandalhinha de couro, acho que francesa, pelo talhe. Pena que esconda o pezinho com uma insípida meia branca, masculina- intempestiva. Ela fecha os olhinhos e fica assim, por alguns instantes, absorta, apertadinhos. Quando se levanta do banco, sua blusinha levanta-se também, deixando, ah, meu deus, nu o pequenino e solitário e inerme umbiguinho, de onde tudo começou, e eu me delicio, de longe, de meu banco, emocionado, escondido em minha loucura magnética, procurando não incomodar, deixando seus movimentos, o seu teatro particular, a sua exibição, para mim, acredito. Sábado. Ela vai ao Armazém. Tenho uma chance. Oi, como vai, tudo bem, quanto tempo? Nem eu acredito em minha cara de pau. Ela parece gostar de minha mentira. Todas gostam. Todas mentem. Conversamos banalidades. Meu coração está quase pulando em seu discreto decote. Me acompanha até a praça Parteira Bernardina. Não sei o que falar. Tento ser engraçado, elas gostam, mas não sou feliz. Tudo bem. Nunca fui bom em contar piada. Tudo bem. Deixo-a na porta da casa de uma amiga, que não pode me ver - vergonha, talvez -, com um leve beijinho nas mãos. Promete me convidar para uma festa em sua casa...quer que, não acreditei, conheça seus familiares...Me disse que sou um bom amigo... Não sei onde estou nem pra onde vou, tudo, parece, mudou de lugar. Basta uma girada sobre si mesmo com os olhos fechados para o homem se perder no mundo. Terça-feira. Fico marcando no relógio os segundos que faltam para ela sair de casa. São os segundos mais longos de minha vida. Ela sai. Me escondo. Sigo-a até a parada de ônibus. Resolvo não segui-la hoje. Vou escrever uma carta. Ainda não respondi a que me mandou. Não consigo escrever. Tenho que escrever. É necessário que escreva. Ricardo, jornalista, editor de cultura do jornal local, passa pela minha casa e me convida para jogar sinuca. Vou. Está um bom dia para a diversão. Talvez Rica me ajude. Estou um pouco velho e minha conversa deve estar um pouco envelhecida também. E branquinha precisa ser convencida de que não sou o velho que ela está pensando. Por trás dessa calva há um jovem louco pra agarrá-la, jogá-la no chão... Miríades de miragens sobre o pano verde-ervilha. Apanho um livro. Não consigo ler. Estou ficando louco! Cadê você, branquinha? O que é preciso fazer para beijá-la? Não sei como. Vou acabar agarrando você, fazendo uma besteira. Não. Não é uma boa tática. Mas qual é a tática? O que devo fazer, meu deus? Deus, você que está aí em cima, vendo o meu desespero, vê se me ajuda! Deus não me ajudou. Deus não ajuda ninguém. O crepúsculo masculino aconteceu depois da segunda grande guerra. O final de uma era. O final de uma filosofia. O final. Uma filosofia. Nova? Como sofro nestes tempos femininos! Ricardo me leva pra conhecer umas amigas. É uma casa de licenciosidades, como se diz. Me apresenta algumas belas garotas, embora eu tenha o pressentimento de que forcem um pouco o sorriso, uma leve ruguinha no canto da boca denunciam o que acabo de dizer, e, ainda, observo, não têm um décimo da classe de branquinha, principalmente quando ela tem um cigarrinho entre os dedos. Diz que posso me divertir. Uma culpa, o coração apertado, a dúvida crucial, um óbice momentâneo. Não consigo me divertir. Branquinha não sai de minha lembrança. Nem se quisesse conseguiria abraçar outra mulher. A morena que "fica" ao meu lado, solícita, parece perceber o meu embaraço. Me despeço dela e de Ricardo e vou-me embora. Em casa, a dor, acho, é mais suave. Um erro. Um pássaro na gaiola, preso, alucinado, e sem saída, nenhuma, aliás, uma, tenho medo, não sei o que acontece comigo, depois de velho, esse medo, medo, medo. Vou até a casa de Branquinha, que fica perto da USC. Não vou. Vou. Não fui. Jamais verei Branquinha! Me decidi: vou acabar com tudo: no rio: vou conversar com ela: a quero. Estou vivo. Como nunca. Vivo. Viva! Não fomos passear no rio. Branquinha não quis. Teve medo, acredito. Me convidou para almoçar no próximo domingo em sua casa, como havíamos combinado outro dia. Mas não me lembrava de ter combinado isso com ela. Se Branquinha diz que combinamos, quem seria eu para negar. Até porque ando bebendo demais. Deve ser isso. Hoje é quarta-feira. Tenho quatro dias para me preparar...e sofrer. Disse-me que tem uma surpresa. Estou ansioso. Será? É bem provável que não. Voltei correndo para casa rindo, chorando, rindo, falando sozinho, não acreditando, me martirizando: devo ter esperança? Ela deve saber sobre os meus desejos. Claro, as mulheres sempre "sabem". Faz parte de seus instintos. O silêncio, esse vazio. Os vidros da janela embaciados. O inverno é uma questão de dias. Os carros, na rua, lá fora, desfilam como cobras metálicas, ruidosas, pelo paralelepípedo. Rodas roendo o sossego das horas. Estico o meu pescoço para fora. Espio por sobre o parapeito. Quase fico sem meus óculos. Dois senhores conversam sobre política sob a janela. Fazem previsões que não terão tempo de ver. O senhor da direita, com um chapéu puído, preto, mostra, com as mãos, uma senhora que atravessa a rua, próximo à esquina. Bem vestida, roupas modernas, sóbrias, e carrega um perfume doce à sua volta. O senhor da esquerda gesticula. A mulher apenas os observa, de soslaio, com um parcimonioso desdém. Retomo o livro que iniciei na segunda-feira: "Os néscios e os sensatos são igualmente inofensivos. Somente os semiloucos e os semiprudentes são perigosos". Amanhã é domingo. Amanhã. Acordo bem cedo. Uma força de expressão. Nem dormi à noite. Algo de anormal está me acometendo. Nunca, que eu saiba e sinta, fiquei tão obcecado por uma idéia. Será a velhice? Quando jovem só se pensa nisso, embora, no meu caso, pouco fazia neste sentido. Mas percebo que, agora, com Branquinha, só penso nela e estou me esforçando, apesar das limitações que tenho. A velhice faz o homem exacerbar seus sentimentos? Deve ser isso. A velhice, seletiva, caprichosa, faz o homem passar, sem medo, apesar de algum medo sempre existir, vergonha pelos seus instintos masculinos. A paixão não é uma flor, como Branquinha. É uma senhora, velha enrugada, sem vergonha, prostituta aposentada, prisioneira contumaz de madeixas grisalhas. Será? Sábado. Fui ao Armazém esperando encontrar Branquinha. Não encontrei. Não deve ter saído de casa ainda. É cedo. Vou esperar um pouco. Será que ela ainda se lembra de mim? A surpresa que me reserva, talvez? Não haverá almoço. Não fui convidado para almoço algum. Esqueça!!! Nenhuma jovem em flor convidaria um velho pobre para almoçar em sua casa. Já convidou uma vez. Será o meu desejo apenas fruto de uma obsessão? Se for, tanto melhor. Não tenho muito o que perder, eu que já perdi muito, sempre perdi, sempre perco. Não é loucura. Não é obsessão. Percebi desde o início. Ela me reserva uma surpresa. Pronto. Quero falar uma coisa muito importante pra você, Branquinha! Entrei na casa acompanhado de um senhor. Mais novo que eu. Será? É o pai de Branquinha. Homem sisudo, casmurro e parece não se interessar em conversar comigo. Nem eu tenho assunto para ele. A sala de jantar, de estuque branco, esconde, entre a mobília, algo que me interessa. Branquinha. Sua mãe é atraente, simples, uma dona de casa. Me fala sobre a vida na cidade, quando chegaram expulsos da Guerra dos Cravos. Fala ininterruptamente. Branquinha me olha. Olho para Branquinha. Não queria estar ali. Branquinha me fez estar ali. Seu rosto, lívido, um pouco escuro embaixo dos olhos. Chorou? Não. A mãe de Branquinha gosta de conversar. Maria Carolina (Branquinha, claro) sempre foi uma excelente garota, desde a infância, nunca teve pensamentos estranhos à sua idade, e sempre obedeceu os pais. Não a tenho mais. A tive um dia? O almoço foi servido. Bacalhau à portuguesa. Sem vinho. Um suco de uva em seu lugar. O pai de Branquinha não pode mais beber, me confidencia: “ele quase morreu de cirrose hepática, de tanto beber”. Percebo um leve desconforto nos gestos de Branquinha. Rápidos, ríspidos, certeiros. Não são gestos de uma garota intuitiva como Branquinha. Ela me diz, meio sem jeito, que admira a atriz Maria de Medeiros e que adorou o filme Henry e June, principalmente o papel que a atriz portuguesa interpretou no filme. Eu gosto, como ela, de homens mais velhos, como o Miller. À mesa do almoço, junto com seus pais. Meu coração se desespera de alegria. Tenho dificuldades em segurar os talheres. Será que ela quis dizer alguma coisa com tal afirmação? Com licença, vou ao banheiro. Não estou passando muito bem. Com licença Branquinha. Não consegui parar de rir, olhando para o espelho. Belisco minha face. Dói. Faço força, interpreto o velho papel. Volto. Estou bem. Acho que é o frio. O almoço estava ótimo. Quando nos veremos? O que você queria dizer com “eu gosto muito de homens mais velhos...” Gostou da minha surpresa? Não consigo encontrar palavras em meu parco repertório. Branquinha está em meu quarto. Ela senta-se na poltrona. Inicia uma gargalhada. Não páre!. O que farei? Este é o meu momento. Vou me aproximar e beijar-lhe a nuca, acariciar o delicado e lascivo pescocinho. Não posso. Posso. Vou. Branquinha se levanta e me dá as costas. Estará tirando a camiseta? Não acredito! Posso me deitar sobre o seu corpo?- Ela me pergunta já adivinhando a resposta, que nem tento dar. - Tire a roupa, por favor. Ainda não consigo acreditar. Sua pele é macia, como supunha. Suas mãos massageiam as minhas costas e os seios, pequeninos como um casal gêmeos de gazela entre os lírios, se esfregam em meu peito. Ela geme em minhas orelhas. Passa a lingüinha em meu pescoço, em meus peitinhos. Ai! Ela me morde os lábios. Um filele de sangue surge estre os seus dentinhos. Ela é ágil. Uma leoa sobre uma presa indefesa. Deixo que trabalhe. Há dois dias não vejo Branquinha. Ela me ama. Ela me quer. Branquinha não mora mais aqui. Foi para Portugal morar com os tios. Ela quis ficar mas achamos melhor para ela, que quer estudar artes plásticas. O sonho da sua infância é ser uma grande escultora, como a Camile Claudel. Portugal é um lindo país e a Universidade de Coimbra é uma das mais importantes da Europa. O senhor conhece? Sento-me no banco da praça onde me sentei com Branquinha algumas vezes. Olho para todos os lados. A vida é assim. No galho sobre a minha cabeça, um gavião come um indefeso pardal macho sob o olhar incrédulo da pardoca. Assim. fim. Desculpe a intromissão. É que não fui capaz de resistir à sua... esquece. Tem outra coisa: de onde eu conheço você? De Londrina? Sampa? De onde, meu Deus? Do Camélias, talvez? Beijos Paulinho