Paulinho, em foto que o Milton Dória tirou na minha camera, começo dos anos noventa
os textos a seguir são de um grande amigo que já se foi, o Paulo César Ruiz, ele deixou os textos comigo pouco antes de falecer e eu os publico agora em sua homenagem...
Livro das Coisas Cotidianas
Lucrécia, vestindo o seu robe opalescente, dentinhos amarelados pelos tufos de cigarros que consome diariamente e doses hercúleas de conhaque espanhol, passava as horas de sua existência ralhando contra tudo e todos que infernizavam seu convívio tranquilo com a solidão. Aquele era um dia como qualquer outro: céu gris, calor insuportável, insetos atazanando. Sem o garbo da mocidade, Lucrécia era, porém, com os anos de experiência, uma exímia arremessadora de chinelas em quem passasse à sua porta, aí não tinha escolha: podia ser criança ou adulto, era indiferente.
Retornando sozinha para o resto de alegria que ainda podia ter, lembrava da infância na fazenda, cercada de animais e as plantações de café que o pai tanto se vangloriava. Mais uma dose era bom neste momento. Um dos fatos que não saía de sua memória, principalmente quando se olhava no espelho, era que numa manhã, ainda criança, a manivela do poço fez miséria no lado esquerdo de sua testa, marcando para sempre o seu rosto que, tirante isso, fora de uma beleza incomensurável e, apesar das evidências, parecia imaculado. Ela lembrava também, com um sorriso matreiro nos lábios os coitados dos frangos, pipocando, caindo na caçarola fumegante, com o pescoço ainda, vocês sabem... Sempre aos domingos, dia de festa no sítio, quando haviam convidados, a família se reunia e todos se divertiam, dançavam, as meninas; bebiam, os homens.
Mas hoje, com a idade avançada, isso eram apenas lembranças de um passado de sonhos que não se configuraram na maioridade. Os homens, para ela, foram os responsáveis pela desgraça que era obrigada a viver agora. Mas Lucrécia não era uma mulher que se arrependia montada em soluços e autocomiseração. Não. Lucrécia até se divertia com a decrepitude visível de seus músculos e ossos.
- Saia daqui seu velho fedorento - gritava Lucrécia para o seu Patrício, vizinho e incurável apaixonado por ela, que não dava-lhe chance nem de se aproximar para um leve bate-papo. “Quem gosta de velho é reumatismo”.
Ela olha dali, de sua cadeira de encosto, com as voltas que o pescoço dá quando a infelicidade é uma cortesã ferina com quem se deve conviver sem resignação. Ela vislumbra as areias movediças que os pústulas colocaram em seu caminho, mas esses, ela gostava de frisar, fez afundar na lama seus bigodes, ah, se fez, alguns demoraram mais para pedir socorro, outros, menos, mas todos, de uma forma ou de outra, caíram a seus pés, as delícias eram visíveis em seus lábios entreabertos, sorrindo. Quem viu, sabe. Poucos, porém, deram mais alegrias, mitigaram sua dor, ela tinha suas armas, canhões, arapucas, minas terrenas sobre a pele delicada e bela que tivera quando jovem, e um bom sarro, orra, liberta mais que um orgasmo-solo. Não é verdade Onã?
Depois de se levantar da cadeira de encosto, ofegando, foi à cozinha e, vassoura em punho, varreu a porta de sua casa, antes de pensar em ir ao botequim beber uma tequila - refrescava a memória, dizia -, essa que sorve todas as manhãs para dar impulso aos neurônios, olha ela de novo brincando com as letrinhas no cérebro.
- Mas tu é pitoco mesmo, ein, seu Mané.
Quem não sabe brincar com o sofrimento que se foda, cai fora, não vou brigar por pouco. Não bebi essas águas que me ofereceste, não seu lettes de uma figa, o meu inferno procuro vislumbrar com mais exatidão quando me preocupo com ele, quando o sorvo com sofreguidão. Me recusei a vida inteira em ser uma idiota.
Às vezes Luicrécia tem medo do sono. UM sonho atróz a persegue nessas últimas noites, mas, ela confessa, é um medo, ao mesmo tempo, excitante, confuso e irresistível. Essa sombra que a aperta sobre o colchão indica que ainda provoca algo em alguém, nem que seja de um outro mundo. Portanto, ela espera esse sono como um cão selvagem, como um lancinante grito de uma astuta raposa. Será que o teclado de seu cerebabélico entrou em parafuso? Adora quando a noite começa a comer o dia, quando ouvem-se balidos insurdecedores em sua cabeça embriagada. Será que é perceptível a milionésima parte do que, de fato, existe? Esses seres malignos, que vê com os olhos úmidos e irascíveis, conduzem, imperceptivelmente, à sanha nossa de cada dia?
Mundo doido, sem pé nem cabeça, cheia de bichos e criaturas inverossímeis pasmando a mais obtusa ilusão universal. Lucrécia queria ter dito a Dante que não deve haver dor maior do que, na miséria, recordar o tempo feliz. Não digo miséria, ou melhor, digo sim, a velhice é uma miséria, ficar velho é também esse saber.
Quando era jovem, Lucrécia adorava balançar o rabo, a fenda intumecida de lavas, quando se esbaldava, caprichando no rebolado e sempre escolhia os mais horrendos para desespero dos mais belos, as mais belas, dizia, não combinam com os belos, ambiciosos e volúveis, esses horrendos lambiam a minha rosquinha com mais sofreguidão, com a sofreguidão dos náufragos na proximidade de uma ilha, eram deuses, zeus, jesus, alá, exu.
Lorico, espinhudo, magriça, o mais das delícias com sua tromba pé-de-mesa quase me abria em duas. Mas sempre vinha esses idiotas com carinhas de viados querendo roubar esse meu sonho. Me gusta a pegada ingênua dos desafortunados.
O mundo de Lucrécia não era, por experiência própra, esse conluio de idiotas que lhe impingia a razão dominante.
- Não me chame de senhora nem de peixinho - dizia a Lorico enquanto lambia-lhe a gosma entre as pernas. Enrabichado que só ele, Lorico fisgava-lhe os passinhos de adolescente, enfiando-lhe o dedinho por baixo da sainha minúscula, botinha de sertaneja. Não tinha medo de zanzar, pequinina como era, por essas ruas ermas, em busca de mãozinhas inxeridas, o joelhinho pulando de tesão.
- Vem qui tirar minha meinha branca, Lorico, vem qui, tou escorrendo pelas pernas, tá morninha na canela a baba, vem qui correndo, vou te mostrar o mundo, o ninho da pequerruxa. Tá com fome é? Vem qui.
- Tou indo, Luluzinha, quero entabular essa mumunha, já vou, fique quietinha, vou amansar o calor dessa pombinha, sou uma chuva nessas noites de verão - com o olhinho ressabiado de alegria, ele corria atrás de Lucrécia pelas campinas perfumadas de dama da noite e bosta de vaca.
Seu exercício predileto: dar azo a contradições: seus pais punham comportamentos na pequena e deus dispunha outros. Nunca foi mulher de pensar pela boca de macho nenhum. Ela diz que pertencia à trupe das sublimes vulgares, das obeliscas limítrofes.
Lucrécia voltou ao bar. Ciciava o copo, os olhos se perdendo nas luminosidades do líquido. Os fregueses, como sempre, esticavam os ouvidos para escultar seu solilóquio infindo, mas nada: “Calhordas, que deus há de enfiar-lhes a cimitarra no cu! Pascácios!” Não estava mais ciciando.
- Vem até aqui, Aires - solicitou, autoritária, Lucrécia. NO que foi atendida de inopinado.
- Quê? - perguntou, como todos os outros, o não menos curioso dos lorpas da redondeza, o dono do buteco.
Ela esticou o pé, e Aires caiu de cara na mesa.
- Ouça aqui, sua...
Todos cairam na gargalhada ante o tombo do desastrado barman, até porque ele não era o primeiro a cair na sardônica armadilha de Lucrécia.
- Mais uma dose, seu filha da puta!
Aires, com a cara desconsolada, foi para o balcão e preparou outra dose para Lucrécia, sem antes, claro, dar uma cusparada dentro do copo de aguardente. “Toma, sua vaca”
- Com catarro é melhor Aires - gritou Lucrécia de sua mesa, soltando a maior gargalhada.
- O que o berço dá, só a cova tira - comentou Aires ao velho que ainda ria de seu tropicão.
- Saia pra lá, seu português de uma figa, vai catar gabiroba rasteira, vai, lá na quebrada, vai... - respondeu o arrivista.
Lucrécia saía do bar em pensamentos horizontais. Lembrava-se de um gordinho que certa noite, em uma boate, fez lhe retretas, poemas, peças, piadas para brincar com a sua priquita. Nunca, sabe, nada. Seus olhos acompanhavam os lábios no sorriso galhofo. “Só comi quem eu quis. “Essa é a minha verdade”, pensava. Mas esse filha de uma puta de tempo, esse rato roedor de coisas...
Essa é a minha verdade. Bolhas de sabão. Explico. Há idéias que nascem sem pai nem mãe, crescem com destemida ambição, saem das favelas do cérebro e, inadvertidamente, chegam a um certo topo. Nem sempre, vale dizer, dizem alguma coisa, mas se o cabra a transforma em justificativa para algo, é aceita. Há outras que nascem nos palácios da criação - essas mais difíceis, posto que idéias não sejam matérias que rondem essas rodas - e vão parar no lixo. Que mané verdade. Não tenho verdade, sou uma mentira que só o tempo vai comprovar daqui uns aninhos, não muito. Tudo a seu tempo. Chega. Minha priquita vive de um passado, pronto. Mas era bom, minino.
Xiruba, ajeitadinha, molhadinha de uma gosma peixe-boi, e me vinham aquelas lambidinhas, ele (ou ela, nunca me importei) de cócoras, eu com o compasso aberto, siriema, saracura, a linguinha - as duas, diga-se - com a gosma misturada às gotinhas salgadas da podridão das bocas.
- Cê tá precisando de uma rede pra entender esse tempo, Lucrécia, pra confortar esse seu espírito, não uma mesa de bar - sentenciava seu Mameluco, que acabava de entrar no boteco e observou a senhora enliada em seus pensamentos.
- Já mandei o senhor tomar no cu hoje, Mamelão, já?
A gargalhada voltou a frequentar o ambiente.
- Como toda exibicionista, sempre buscando o absoluto, Lucrécia. Isso não são modos de umas dondoca chupadeira como você, minha querida. Sua vidinha é chulé nessa busca incessante por reminescências que não voltam mais. O álcool não deixa.
- Sabia, Mameluco, que é agradável contemplar os escombros de uma mulher que já foi atraente, desejada, como essa velha que você está pondo o olho nesse exato momento?
- Atraente...
- Sim, meu querido, para quem suas mãozinhas calejadas já bateram muita bronha em suas abstrações de garanhão solitário, só que nunca comeu ninguém de calibre, só as zinhas...
- É verdade, Lucrécia, Não cheguei nunca perto dessa sua xota, nem mesmo de sua saliva desdenhosa. Essa, talvez, foi a minha salvação, viúva negra.
- Cuspo agora ou deixo para fazê-lo depois, para não humilhar um ser roto e esganiçado como você, Mameluco, um nefelibata cujos sonhos dormitaram em puros devaneios estéreis e nunca se materializaram, viraram realidade. Os vermes que farão o banquete com sua carne, com certeza, vão ter mais felicidade que você, ignóbil almofadinha. Pelo menos vão realizar algo. Coisa que você, em sua insignificância, jamais fez. Nem hoje deixaria você desfrutar a baba de minha boca cariada.
- Ah, querida Lucrécia, essa sua honestidade mexe mais no meu sangue do que a imaginação poderia fazer. Sinto-me satisfeito em em lhe causar essa repugnância. Cuspa onde quiser, já que o cuspe é a única dádiva que ainda pode oferecer a alguém.
- As rugas de um infeliz é o maior obstáculo para que ele consiga enxergar - jabiou Lucrécia na face de Malelão, que já dava sinal de fadiga.
Foi neste instante que o dono do estabelecimento, Aires, na sua cordial porém desnecessária solicitude, se aproxima dos litigantes:
- Parem com essa discussão inócua, o melhor que vocês têm a fazer é um brinde à amizade de mais de 50 anos. Tão parecendo crianças.
Lucrécia, que não estava mais preocupada com a discussão com o oponente, pensava no inútil que se tornara fuçar idéias numa mesa de bar, sob burburinhos e intervenções indesejáveis que, se fosse fácil a ela, Lucrécia, os abateria a tapas ou a tiros, como queira. Mas ela não era mais a grande predadora que fora no passado. Mas era preciso, ela entendia, prestar conta com a história, fazer um balanço precisamente da história de suas grandes conquistas e, paradoxalmente, poucas vitórias consistentes. Afinal, como diz o visionário, uma cadeia alimentar sem o grande predador está fadada ao fracasso. E ela era essa leoa, que , agora, estava, de certa forma, entregando os pontos.
Lucrécia, cansada da cena, levanta-se e sai do bar, sem, antes dar uma cutucada em seu Aires: “selecione melhor os habituês de seu estabelecimento, Aires. Alguns deles provocam nojo. Ninguém suporta a empafia de certos sujeitos metidos a algelicais”.
Foi para casa. Poderia fazer uma viagem, voltar a lugares em que conhecera a alegria, a fugaz e encantatória alegria . Mas viagens, que antes a encantavam, pareciam, nesse momento de sua vida, insuportáveis, uma questão de cor sem substância, essa caça fantasma da sombra de seu próprio sonho.
Anoitecia. No poste, logo acima de sua cabeça, a lâmpada dava sinal de vida, um cogumelo iridescente que iluminaria sem piedade a escuridão que Lucrécia considerava purificadora. De volta do trabalho o hediondo e incansável coro de gravatas brancas. Rertornava sozinha para seus restos e para o fundo das chávenas e seu indissociável ar rançoso. Ela pensava que, apesar de tudo isso, preferia beber no mesmo ambiente de pessoas que detestava, a ficar só. Isso fazia em casa. Em seus olhos uma pequena lágrima despontava.
Estar de volta à casa, um touro que perdeu os chifres e o gosto pelas emoções, onde os pergaminhos secretos não tinham mais utilidade alguma, estar ali pouco ou nada mais significava. Mas, se quisesse ou tivesse disposição para tal, a volta da maçaneta da porta ainda poderia levá-la a outros mundos. Que bom seria se pudesse se masturbar de novo.
- E esta lua, esse óbice de uma grande idéia, de uma saída. Eu sou ela, essa lua, que me quer ver caindo, bêbada numa madrugada impossível, ela que me quer ver velha e capenga, mas ainda resisto, quem é você mesmo? Lua? Era você que fazia um foco à cena que em breve Lucrécia interpretaria dentro de sua casa? Felizmente, sua luz é cega.
Lucrécia foi ao banheiro lavar o rosto e dar uma cusparada na pia do lavabo. Como é difícil ouvir pândegos sem sentir aquela íntima vontade de vomitar. “Cuspo por isso”, pensava entre o amargo - catártico? - e o adocicado que lhe descia pela garganta.
Não acendeu a luz elétrica, mas o candeeiro, com a luz opaca era possível ver seus olhos no espelho, como isso lhe doía, uma espécie de dor essa falta de escuridão total, uma melancolia que não imaginava ser capaz de sentir depois de todos esses anos de solidão. Ao acender um cigarro, observou a pusilaminidade da brasa que também estuprava, em sua egoísta performance, a escuridão do quarto. Tocou as próprias têmporas e ficou apavorada. Decidiu correr. Não. Isso não era mais possível. Mas ela pensava naquela máxima colhida em um livro de filosofia: “Quem não está a altura de seu desejo, é uma pessoa a quem o mundo pode chamar de covarde”.
Lucrécia repugnava quem entendem as mulheres como se fossem estátuas de carnes lascivas, erigidas por um deus desqualificado e, segundo alguns, um pintor acadêmico. O que qualifica a grande mulher, pensava Lucrécia, é a voluptuosidade temperada não com uma inocência metafísica, mas com um iniludível sarcasmo. Uma grande mulher: a que perturba com um simples abrir e fechar de olhos. “Eu deveria, com meu andar de ninfa, ter nascido em Sicíone, onde nunca foi preciso fazer cantatas para as virgens. Pelo contrário, o falo era objeto de adoração.”
Mas é evidente que nem todas as mulheres merecem o status de grande. A maioria delas sonham a noite com os mais lindos e guerreiros gajos e, durante o dia, os odeiam. Na mocidade, Lucrécia não estragou sua vida porque outras mulheres encontraram alguém que vai estragar a delas. “Como nos filmes, sempre havia um homem - a quem dominava - sentado em minha mesa. Como Anais Nin, sempre fui subordinada apenas aos meus instintos.”
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Harmonia? Sinto-me como se fosse um acorde suave de uma música que delicadamente força o tímpano de um jovem em busca de um (fruição deliberada) destino, um olhar de viés sobre os vermes que, no final, festejarão o corpo, alguns deles, eu uma musa esfacelada nesse mato cachoeiras criança perdida lasciva entretida em solilóquios somente para evitar - ou melhor, enganar - a asfixia - estou sendo expulsa de meu habitat por total falta de entrosamento com o que se transformou a existência, estou perdendo o elo que me ligava a este infinito - afinal, consideva-me não só invencível, mas infinita -, o cotidiano perdeu a relação com a força centrípeta que me movia para exatamente esse centro especial, leve, equilibrado, que eu diagnosticava ser a essência de um ser vivo, tento adjetivos, árias, poemas, mas vem-me à lembrança imediata vinhetas abstrusas, achaques indeléveis e constragendores, até mesmo a lua, essa língua que o sol mostra todas as noites depois que vai para o Japão, já não me é mais intranquilizadora, pelo contrário, tornou-se indiferente, sou levada pelas mãos de um Broch, um Virgílio fêmea a deitar sobre uma liteira a um inferno bem particular, desses que quando se é jovem não é possível alcançar nem imaginar, minha mente se dispersa na tessitura desse flagelo elementar, de resto esse metamundo habitado por pessoas incessantes de beleza e, não raro, vazias, está se revelando um canto lento de um esquizofrênico pesadelo, não digo que dói, não é isso, mas a indiferença é pior que qualquer tipo de maledicência que se pode experenciar, vivemos um mundo de ignorância, é tudo: sou uma serpente-arraia-escorpião que morde a própria cauda quando a opção, parece, já não está ao alcance das mãos. Não me sinto uma abelha rainha a encher a pança, cercada por milhões de seres assexuados beijando-me as ordens sem, no mínimo, ter consciência dos próprios atos, não se vive de vaidades sem se transformar numa borboleta, aquela flor que voa carregando a nossa alma e que, loguinho, encontra o fim entre as formigas.
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A primeira namorada de Lucrécia tinha os cabelos longos e louros. Era linda em sua sainha azul, era um céu aquele azul protetor, e cada passinho que dava quando vinha em sua direção, cada ciscar de lábios, dava pra ver a língua frêmita e molhada deslizar ora pelo lábio inferior, ora pelo superior, num balé de êxtase. O coração de Lucrécia galopava dentro do peito, não tanto de medo, não, isso não, mas por uma singularidade que não conseguia discernir. Tinham 15 anos, na flor da idade.
Duane, era seu nome.
“Duane, dizia-lhe Lucrécia, sexo, qualquer cachorro sarnento faz. Agora privar da presença de uma mulher elegante, bela, sensível, inteligente, é um prazer para poucos”. Por isso tenho em você meu medium para as estrelas. Não suporto a caterva e suas durezas no andar, dos cabelos esvoaçantes e, sobretudo, pela parca musicalidade. Que a caterva se limite à sua insignificância.
“Venha Duane, venha.”
No interior, onde Lucrécia aprendeu a arte do “se virar”, como se diz, não em tomos filosóficos, claro, num país como o Brasil a filosofia nacional é a das ruas nunca a das academias nem dos cérebros da elite, que não pensam, só copiam, tinha um ditado, masculino que seja, mas que lhe servia muito: “Ter um homem pode não ser satisfatório. O difícil não é tanto ter que se satisfazer sozinho, mas é não ter em quem pensar para cumprir a relação."
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O dia estava clareando, novamente. Pela milionésima vez. Lucrécia não tinha vontade de olhar para o céu, com seu azul corrosivo, que lhe feria as pupilas, noctívaga que era. Preferia olhar para o fundo do poço de onde tirava água para abastecer a muringa da família, aquele mesmo do cambito que lhe feriu a testa. Ela tirava a tampa e ficava divagando sobre as profundezas, a viagem que seria lá dentro, bem mais perto, ela achava, do Japão, como lhe ensinaram, na escola do patrimônio. Sua professora dizia que as meninas e os meninos devem fazer carinho, se tocar constantemente, o carinho comunica calor, e isso, segundo a professora, acalma a alma e o medo da solidão, arght, toma seu rumo. “A baleia, em sua grandeza, deixa-se acariciar; já a pulga, em sua mesquinha pequenez, não.”, era o exemplo que mais usava a professora, até enchendo o saco das crianças com sua filosofiazianha mundana. Mas, não obatante, foi aí que ela, Lucrécia, aprendeu que o corpo humano não vive sozinho, não pode ser entendido como um mundo insular, periférico, ele precisa de um outro pólo, que não precisa ser, necessariamente, oposto.
A escola na cidade, uma vida à parte. No início um pesadelo, um outro pesadelo, não menos estranho que o vivido até aquele momento. Seu pai dissera-lhe que agora era a hora de crescer e tomar conta do mundo. Que mundo é esse, queria saber, que vai além do pé de gabiroba, quando se arrasatava, lúbrica. Ela seguiu à risca. Sentada na cadeira - as pessoas diziam “carteira”, fato que até hoje ela desconhece -, Lucrécia cruzou as pernas longas e grossas, como fazia nas festas de domingo. A mesma colisão de olhares convergendo em sua direção. Um risinho maroto, esse que ela deu: “sou a mesma aqui, ainda sou eu, domino, segura, a rédea que me pertence. É bom, né?”
Um jovem, belo e idiota, cabelos longos e escorridos, matreiro, altivo, cujos lábios não escondem seu hábito de conquistador banal e ignorante, a olhou com uma lubricidade que a enojou: ela preferia a timidez. Esse rapaz iria certamente, ela pensou, sofrer em suas mãos. Ela olhou para o outro lado e viu o que queria. Suas pernas eram uma faca que se alojava no estômago de um outro jovem. Ela pousou a mãozinha macia e crispada sobre os joelhos. Ela via as estocadas, as viris e inexoráveis estocadas surtir o efeito desejado. O rapaz com uma carinha de cachorro vira-lata, cabelinho à la milico, com um sorriso escarniçado: a faca se fez espada. “Ele, perplexo, eu e minhas dádivas, ele morrendo um pouco naquela manhã, eu não conseguindo segurar a alegria do coração saçaricando dentro do peito. Adorei, era uma espécie de amor esse sofrimento que eu causava àquele jovem que eu ainda não conhecia. Minto. Conhecia, sim, conhecia, sempre conheço. “Se o corpo fala, deve falar por linhas mais tortas que deus”.
Mas e o amor? Será sempre essa definição metafísica, essa inconstância entre a dor e o prazer? Aliás, é preciso que se diga, Lucrécia só acredita no amor quando o prazer suplanta de goleada a dor, que - tentáculo do espírito do mal, luciferino, essa dialética do bem e do mal -, como um sistema matemático, sempre volta a fazer das suas alegorias insondáveis, tornando a realidade neste misto de fantasia e pesadelo. Nesse momento, as mentiras tomam seu posto na intimidade dos amantes, as charmosas e persuasivas mentiras finalmente chegam ao seu ápice e revestem o que era belo de um repulsivo bálsamo de falsidade. Isso, geralmente, leva à destruição. Ou à fuga. Muitos escolhem fugir. Mas Lucrécia não tinha muito do que reclamar nessa matéria, já que escolheu, à dedo, todos os passos que dera nessa sua encalacrada vida. Ela guardava a arma de suas escolhas ainda rescendendo a pólvora na gaveta de sua estante mental.
Uma máxima norteou a filosofia existencial de Lucrécia: Mulheres belas, sensíveis, inteligentes e gentis adoram ter na cama homens imbecis - entenda como belos e corruptos, déspotas e eloquentes. Lucrécia costumava ditar a suas amigas na escola, bonitinhas, torpes, sonhadoras, mas sem o seu charme e beleza intangível, que um belo homem não é sequer um amante razoável, uma vez que isso seria um desequilíbrio natural ao ecossistema em que o humano está inserido. Além de péssimos amantes, maculam o prazer feminino com suas egoístas ejaculações precoces. Ciscam como galinhas, arrotam como porcos e pulam de cama em cama como macacos.
continuar com o rapaz....
Amar os homens e as mulheres que dominou não foi uma experiência difícil para Lucrécia, mas, como se diz, saborosa.
Da janela Lucrécia ainda podia ver chegando, depois do crepúsculo, a noite mais cruel que uma Madonna. Os sinais eram precisos nos reflexos alaranjados que emanavam da vidraça. Ler poderia ser uma saída, mesmo depois desses anos todos sem descanso entre letras, emntre moscas que atormentam a leitura, entre abelhas que pousam nas vírgulas, pontos e reticências, os ventos das asas das moscas expulsando as idéias, ah isso... No mundo volátil a que tivemos a intrepidez e a insanidade de construir se vive entre signos, ela pensava, nunca entre humanos. Lucrécia é uma espécie de Gauguim no meio de um turbilhão de filisteus. O bar, naquela hora, não a apaziguaria mais, cada gole ácido de uma dose se comparava a um choque na nuca, mas, qual uma mulher de gênio, astuciosa, ela, Lucrécia, tramava, entre pensamentos entremeados a escalas de Bach, a sua vingança, sua doce e imperativa vingança.
- Tenho em mim uma rodelazinha pulsante, a graça pela qual os homens se mutilam, mentem, fazem guerras etc. Eu tenho essa bomba atômica em minha anatomia - pensava, antes de abrir a geladeira para apanhar uma garrafa de água gelada. - Eu tenho, concluiu.
Ao apanhar o copo, Lucrécia sentiu uma espécie de torpor se apropriar de seu corpo, começou a tiritar de frio, apesar do calor lancinante. Um medo - não um medo arbitrário, desses comuns aos fracos, mas um medo insinuante, intempestivo - começou a dominar os seus sentidos, no início bem de leve, mas aumentando até se instalar definitivamente em seu espírito. Ao sentir náuseas, percebeu que estava sendo dominada por uma nuvem tempestuosa que atiravam orvalhos malignos, mas mesmo assim, prenhe de silêncio, conseguiu abrir a porta da cozinha e sair para o quintal, numa última tentativa de se distanciar daquele oco abismo, daquela inominável chaga que a atormentava sem motivo aparente, talvez a velhice, talvez a punição divina até estão postergada, talvez um simples mal estar por ter negado o bar, o único local onde ainda encontrava motivos para rir de sua dor - e dos outros também, é claro. Rezar nunca teve serventia nenhuma em sua vida, apesar de encurtar um pouco as dúvidas: isso dos cérebros precários, é óbvio. O barulho farfalhante, aquele zunido sem igual que a atropelou quando respirou o ar noturno, se recolheu, fugiu para o desconhecido, de onde, aliás, nunca deveria ter saído. Lucrécia sabia disso tudo, sabia que dessa linha Maginot às avessas viria o inexpugnável, o ignominioso - mas ela não estava muito interessada, sobretudo agora que a dor se dissimulou em vontade de beber uma dose de conhaque espanhol. Iria ao bar. Não a identifiquem com aquele beberrão dostoieviskiano falantelário que procura a tristeza num do copo de aguardente. Nem quer ser pregada na cruz, ser um novo Cristo, longe disso. Nunca. O que procura na bebida vocês bem sabem, é a alegria, essa alegria recôndita que, nesse estado, pode irradiar e que, por acaso, sóbria, não consegue exteriorizar, até porque, é evidente, todos sabem, a introspecção é mais amargurante que qualquer porre.
Quando era jovem tinha uma receita infalível contra a melancolia: orgia, a mundana e necessária orgia. Você ri, né? O ignorante sempre ri quando ignora, já dizia o filósofo. Até Agostinho, ao que se sabe, deu as suas bimbadinhas; antes da castidade era chegado numa fenda intumescida.
Lucrécia sempre foi bela. Uma lufada de vento na face em plena manhã de inverno é fichinha perto de sua exuberância juvenil.
Lucrécia sempre desejou um amante com dentes proeminentes, coelho, como diziam antigamente, e que se vestisse como um urso. Mas jamais encontrou um que tivesse um mínimo de inteligência. Tinha o Eulálio, mas era o imbecil perfeito. Com aquele estilo espigado, flatulente, uma caca, esse que, de medo, sempre a olhava de soslaio, esse homem, homem? - descupe-me a indiscrição, ele, Eulálio, era, na verdade, um bunda mole. Falando em imbecil, não há argumento suficiente para persuadir um traste desses, que adora, porco na pocilga, um agrado no cangote ou um chute no rabo. Recebem, na maioria das vezes, a segunda opção. Mas não é fácil se desvencilhar desses pobres diabos, enfeitados, eloquentes, e dominadores dessa civilização que criaram.
Não gosto quando me olham nos olhos oinsistentemente. Na maioria das vezes sou vencida, abaixo primeiro o olhar, invento uma frase de improviso que não quer dizer, necessariamente, o que estou pensando naquele momento. Encarapitada no cimo do cérebro, essas frases dão a impressão que levo os homens a sério, é quase como um vento gélido coleando na entrada de uma enseada desabitada, por que será que querem as estrelas, se são cegos?
Arrasto minha preguiça como uma chama de sensualidade ascendendo a imensidão das pradarias. Minha consciência, de súbito, alcança algo de inantingível, mas que, ao mesmo tempo, é inútil, um raio perdido entre as vértebras de um paraplégico. O simples aproximar de uma mulher faz o homem perder o trem da existência, que num átimo, enrubesce, e dispara para o terreno do onírico. O homem que não vale o que pesa, apenas sonha como um mambembe sem trupe, abúlico, num esgar se torna vítima, e, para variar, cai em prantos e, ao invés de exigir, ajoelha aos pés da mulher, que, altiva, caminha com os passos da ironia, rindo de suas - dele - insidiosas performances infantis. Vejo pânico em suas faces, um pânico anti-byroniano, um turbilhão blasé, uma vernissagem de vergonha é o que lhe resta. Quando um homem - com aspas - não pode ter na alcova a mulher que deseja, ele diz que é uma puta. Simples apanágio de um insípido idiota. Mas não os culpo, foram criados para isso, pois carregam o sobrebome como se fossem estandartes de vitória, triste falácia de um zé-ninguém travestido de uma elegância atávica estéril, desimportante, essencialmente antidestrutiva.
Final de milênio: homens e mulheres reunidos não se vê idéias circulando pela noite, apenas penas e pompons decorativos.
Quanto mais velha vou ficando, mais a conta vai aumentando com o tempo.
Minha vida é fazer versos. Eles hão de perceber que não sou inferior a quem desprezo.
Essa altivez imaginária desfalece-se com as primeiras nuances da manhã.
Êta vidinha essa minha: limpar o cu com classificados antigos.
Será que sofro de uma doença crônica que os homens são incapazes de perceber? Uma AIDS espiritual, virtual, que os escrotos, na sua bestial sinceridade, podem captar?
Um gim com limão. Sera que vai ser presico falar com Dickens?
A sabedoria cheira a destroços, até o mais tenro urubu sabe, em seu vôo no vácuo, como a fedentina incentiva as narinas mais sensíveis a atingir o nirvana!
A razão? Que é isso, matemática intelectual. Sabemos que são os sentidos que nunca mentem!
Meu mundo é o das aparências. Você conhece outro?
Ao invés de olhar para esse mundinho que você me impinge, prefiro, enquanto preparo uma armadilha para seu olhar, arrancar a sabedoria do cetro que pensa que vai me cegar!
ENCONTRO E REENCONTRO
Gilberto estava com problemas e veio logo agora querer resolvê-los, logo agora que tinha coisas mais importantes pra fazer, logo agora que Isabelle estava tirando a blusa. Logo agora... Fique aí um pouquinho, minha linda, vou ver o que o Gilberto quer comigo, já volto. Gilberto é meu vizinho de chácara. Não é bem um grande amigo, mas depois que se separou da mulher tem me procurado com freqüência. Já volto. Não vá fugir em sua putinha.
"Até amanhã. Não vai se atrasar. Às oito em ponto no escritório".
Ele já foi.
- Você está mentindo pra mim.
- Eu?! Mentindo?! Por quê?
- Se ele é só seu vizinho porque me escondeu aqui nesse quarto?
- Quem disse que eu escondi você aqui...
- Ele conhece a sua mulher?
- Claro que conhece. Mas não é por isso.
- Essa história é velha...
- Que história?
- Diga que me ama, diga... Vai...Com aquela boquinha... Vai diz... Você nunca mais disse que me ama.
- Eu te amo.
- Não assim desse jeito.
- Como?
- Você é um filha da puta mesmo!
- Mas o que foi que eu fiz?
- Vou sair de sua vida, Marcelo. . Eu sei quando começo a sobrar.
- O que é isso, Isabelle, eu amo você...
- Ama uma merda...Você só quer a minha buceta.
- Não seja obscena.
- Não era você que adorava mulheres obscenas?
- Mas não você.
- Chega, tá, já chega. Vou embora. Tchau.
Ah, não! Você não vai sair daqui desse jeito, sem mais nem menos. Você não vai me deixar na mão. Poxa meu amor, o que é isso? Eu amo você. Fica calma, Isabelle. Toma uma dose comigo. Vem cá. Você é a mulher da minha vida. Tome, segure o copo. Vem cá, meu amor.
Desistiu de colocar a blusa. É linda a Isabelle. Aquele disc namoro até que me foi de grande valia. Todas as mulheres que pesquei lá são gostosas. A Isabelle. A Sheilla. A Francini. A Teka. A Luque. A Frida. Todas.
Preparei uma dose dupla. Vou até a cozinha pegar alguma coisa pra dar uma salgada na boca. Quer?
- Quero.
O telefone tocou. Trim... Não atenda, por favor, pode ser a minha esposa... Deixa que eu atendo!
-...
- Sim, tudo bem. Depois a gente conversa...Por telefone é difícil resolver um assunto como este...
-...
- Hoje não. Deixa pramanhã. Eu prefiro. Vai ser melhor para todos.
-...
- Tá bem assim?
Põe o fone no gancho.
Frida. Me esqueci de ligar pra ela na segunda. Eu amo a Frida também. Ela é inteligente e bonita e trepa como ninguém.
- Quem era, Marcelo?
- Um cliente lá do escritório. Esses caras não se tocam...
Depois de uma boa trepada gosto de ficar sozinho e ler. Não suporto conversa fiada na minha cabeça. Isabelle fala muito. Isabelle vai dar uma voltinha por aí. Toma o dinheiro. Abriu uma loja chocante na esquina da Osório com a Rui Barbosa. Elegantérrima. Acho que você vai adorar. Vai lá, querida...Preciso trabalhar um pouco.
- Trabalhar hoje?! Tchau Marcelo.Eu sei...Tá legal...Tô te enchendo, né? Acho que vou pra minha casa. Preciso me preparar para as provas do vestibular mesmo, que começam na próxima semana. Tenho doze dias. Tchau. Vê se me liga. Não vai fazer como é de seu hábito. Um beijo.
Isabelle foi embora. Só vem aqui quando está sem grana. Quando consegue enganar outro otário é difícil encontrá-la em sua casa. Gosto de Isabelle. Gosto. E muito. Gosto das mulheres. Do meu jeito de gostar.
Acontece é que eu adoro a solidão. Não gosto de sair de casa, ir a teatros, cinema, shows, frequentar reuniões sociais, isso não, essas coisas me enchem o saco. O telefone é meu contato com o mundo. Um computador e um telefone me bastam. Só saio de casa porque tenho que trabalhar. Só.
Estou cortando as unhas do pé esquerdo e escutando a terceira sinfonia de Mahler. Há dois dias não ligo pra nenhuma de minhas mulheres. Não sou casado, mas, para elas, as minhas mulheres, sou.
Gilberto queria que eu fosse com ele em uma festa na casa do Alcides Cardoso, um figurão aí da alta roda (falida) da cidade. Disse que não dava, que tinha compromisso, essas coisas. Chamei ele pra vir até o meu apartamento. Chamaríamos umas garotas. Faríamos uma noite especial. Quem se separa perde a manha pra conseguir outras mulheres e o jeito, a saída, são as putas, na verdade, as grandes mulheres, as que prefiro, as minhas mulheres.
Gilberto, esta aqui é Fernanda e esta, Patrícia - Pat para os íntimos.
- Oi, tudo bem Gilberto? O Marcelo falou que você tá meio pra baixo...
- O marcelo disse isso? Que nada. É conversa do Marcelo.
Eu vou ficar com a Pat, Gilberto, gostei do seu jeitinho de colegial. A Fernanda é mais cheia, gostosona, não faz o meu tipo. Prefiro mulheres pequenas.
- Está bem.
Gilberto no quarto com Fernanda.
- Você quer que eu tire a sua roupa?
- Não. Espere um pouco. Por que a pressa. Temos a noite inteirinha pela frente.
- É que eu pensei...
- Esqueça aquela conversa do Marcelo. Eu tô legal. Vem cá vem garota...Senta aqui...Vem
- Ele disse que você estava na pior...Pensei que você tava só querendo...
- Eu gostei de você.
- Você nem me conhece.
- Você sabe dançar?
- Quer que eu dance pra você?
- Quero. Você dança?
Gilberto liga o som. Procura um CD dançante. Encontra. Coloca no aparelho.
- É uma delícia ver você dançando daqui.
Fernanda faz movimentos sensuais com os lábios. Gira. Desabotoa a blusinha branca. Os peitos pulam pra fora. Seus braços são sensuais. Suas costas lisas. Sua boca carnuda.
- Gil, vamos tomar um banho?
- Continue dançando...
- Você acha que eu danço bem?
- Divinamente.
- Você está me gozando.
- Nem pense nisso. Você é uma bailarina.
- Nunca tinha dançado pra homem nenhum.
- Eles não sabem o que perderam.
- Verdade?
- Você quer se casar comigo, Fernanda?
- Para de me gozar, vai...
- Não é gozação. Estou me amarrando em você.
- Você é incrível, Gilberto. Como é que pode um cara tão sensível, bonito, charmoso como você ficar na pior. Como é que pode?
- Quer se casar comigo. Eu amo você, Fernanda.
Fernanda tirou toda a roupa e se deitou na cama junto de Gilberto. Colocou as mãos sobre o peito dele. Massageou o tufo de pelo, hirsutos. Gilberto estava estático. Tirou os sapatos dele. A camisa, que estava só desabotoada. A calça. Começou a lamber o corpo de Gilberto. A língua sabia o que estava fazendo. Te amo Fernanda, te amo, linda, meu amor, eu quero...eu quero...
Marcelo e Patrícia ouviam os gemidos do quarto de Gilberto e Fernanda. Marcelo não queria transar com Pat. Só queria a companhia dela. Estavam abraçados sobre a cama. Ela nua. Ele vestido. Ele acariciava o corpinho de Pat. Quantos anos você tem?
- Dezessete.
Você sabia que eu tenho idade para ser seu pai.
- Quantos anos você tem?
- 38 anos, Pat.
Gilberto segurava o cigarro com a mão direita. Com a esquerda acariciava a bunda de Fernanda que tinha pegado no sono. Tinha trepado como um leão. Tinha trepado de verdade.
Foi ao banheiro e se olhou no espelho. Não viu mais aquele cenho triste, pálido, de hoje de manhã. Passou uma água no rosto e saiu. Na cabeceira da cama tinha um frigobar. Abriu uma cerveja e ficou olhando o corpo de Fernanda, que babava um pouquinho pelo canto da boca, fazendo uma pocinha de saliva no travesseiro. Era incrível. Não conhecia aquela garota que, agora, dormia ao seu lado, no apartamento de um cara que também não era seu grande amigo. Mas aquela garota lhe fazia bem. A sua companhia era agradável, deliciosa. Gostou de Fernanda.
Gilberto e Pat assistiam televisão. Estava passando um filme do Truffaut. "De repente num domingo", a tradução em português. Riam. Trocavam olhares. Pat comia pipoca e tomava uns goles num copo de refrigerante que colocava no chão. Ela não conseguia acompanhar a trama do filme, que achava meio complicada, cheia de mistérios. Marcelo explicava. Ela dizia que entendia, mas estava mesmo interessada, criança, na pipoca.
Fernanda se levantou e foi ao banheiro tomar banho. Olhou-se no espelho. Gostava muito de seu corpo. Tinha certeza que Gilberto também tinha gostado. Todos gostavam. Os homens a queriam e ela se sentia satisfeita por isso.
- Você não vem comigo?
A bolsa de Fernanda estava sobre a cômoda. Gilberto abriu-a e colocou um bom dinheiro lá dentro, talvez o melhor dinheiro que recebera de um homem.
- O que você está esperando, aí, seu chato, vai me deixar aqui sozinha o dia todo?
- Já estou indo, já estou indo.
- Vem.
Patrícia e Fernanda estavam perto da porta prontas para irem embora. Era difícil achar homens como os dois. Elas ainda não tinham conversado sobre o assunto, mas era evidente que estavam felizes.
- Vocês sabem o nosso telefone, né? Vê se não esquece da gente.
- Tchau Gilberto, fica legal, você é um cara super legal...legal mesmo... me ligue...amei você...
- Tchau.
Tchau Pat.
-Tchau. O seu apartamento é super legal, Marcelo. Só não consegui entender o diabo daquele filme.
Fecharam a porta.
E aí Gilberto, tá legal?
- Tô.
O Cobrador
Estava vazio o ônibus, pude observar do lado de fora, no último lugar da fila. Mais de dez pessoas, na maioria adolescentes colegiais, esperavam para subir os degraus da escada. Havia organização. Na minha frente, uma garota morena, de olhos amendoados, cabelos pretos, uma linda garota, que fiquei, de esguelha, olhando por alguns instantes. Ela se parecia com uma amiga, Carol, que eu não via há muito tempo, desde aquela viagem que fiz a Marília em 92. Fiquei observando quando ela , a morena, subia os degraus. Suas pernas estavam bronzeadas e a sua minúscula saia não escondia nem mesmo a calcinha amarelo-palha. Subi, parei alguns instantes à procura de um lugar para me sentar. Escolhi a poltrona de frente à do cobrador, antes de ultrapassar a roleta, pois do outro lado o sol ainda penetrava no interior do ônibus. A morena ainda estava na minha memória, quando vi a cena.
Pode parecer mentira ou um sonho, mas, tenham certeza, eu estava lúcido quando o que vou contar aconteceu.
O cobrador do ônibus, um rapaz de seus 28 anos de idade, louro, barba por fazer, olhos fundos, lia um livro grosso e não tirava os olhos das páginas. Até aí normal: um jovem lendo um livro. A primeira da fila, uma senhora, acho que a professora dos adolescentes, ficou parada diante da roleta, à espera que o cobrador a olhasse e autorizasse a sua passagem, e ele nem ligava, distante, entretido com a sua leitura. De repente, ele, sem olhar para a senhora, disse, categoricamente:
- A senhora não vai passar?
A mulher, meio sem jeito, atônita mesmo, acabou atravessando a roleta, entregando algumas moedas ao jovem. Ele segurou entre os dedos as moedas, fechou a mão, esfregou-as, ficou assim alguns segundos, e colocou-as na gaveta, nem se preocupou em contá-las. Os olhos comendo as linhas da página, sem qualquer indício de vacilo: lia com voracidade.
Isso me intrigou. Pensei comigo: “Ele não conta o dinheiro. Parece que faz as contas com o tato”.
Fiquei observando o outro passageiro passar pela roleta. Um senhor de meia idade, cabelos grisalhos e o cenho um pouco cansado. Ele passou e pagou a tarifa com uma nota de dez cruzeiros. O cobrador, para meu espanto, pegou a nota com os dedos, fez os mesmos movimentos que tinha feito com as moedas, enfiou a mão na gaveta, remexeu do lado esquerdo e, depois, do direito, e, finalmente, entregou o troco ao senhor, demorando pouco tempo, uns quatro segundos, talvez, e, principalmente, sem tirar os olhos do livro. Entregou o troco, e já virou, com veemência, a página, e os olhos correndo pela sua superfície branca. Fiquei mais curioso ainda.
Olhei em baixo de sua poltrona, e a surpresa foi, ainda, maior. Parecia uma biblioteca. Tinha uns cinquenta livros, dispostos numa organização que faria inveja a muitos bibliotecários. E, como pude obervar, em ordem alfabética por autor.
O rapaz não parou de ler sequer um segundo. Não olhou para ninguém, parecia em um outro mundo, em outra sintonia, em transe, e não houve nenhuma reclamação de troco errado, ou qualquer ocorrência que perturbasse a sua leitura. Os passageiros, cúmplices.
De quando em vez ele fazia uma anotação em uma folha de papel timbrada que estava dentro da gaveta, sem, contudo, interromper a leitura. Até mesmo quando o fiscal da empresa entrou para verificar se estava tudo bem , ele não olhou para o seu superior, apenas retirou a folha timbrada da gaveta e entregou a ele, ao fiscal, que o devolveu logo em seguida, depois de analisar os números.
- Muito bem, Butler. Hoje está um grande dia pra você. Já vendeu mais de trezentos vales transpostes. Muito bem... - O fiscal gesticulava bastante ao falar.
O jovem cobrador não respondeu, muito menos parou de ler. Virou mais uma página. Estava no final do livro. Virou para a última página, e continuou. Quando terminou a última palavra, fechou o livro rapidamente, e, para espanto geral, colocou-o em baixo de sua poltrona, no local apropriado, na ordem, e apanhou um outro, e foi logo abrindo na primeira página para começar a alucinada leitura. Não deu a mínima pra ninguém. Todos receberam o mesmo tratamento, quer dizer, o desprezo.
O fiscal, na primeira parada, desceu e ficou rindo sozinho, feliz com o desempenho do jovem cobrador misterioso. Acho que ele tem algum benefício com o bom desempenho dos cobradores aos quais fiscaliza, pensei.
Eu já não estava acreditando muito no que estava presenciando. Um cobrador que não olha para os passageiros do ônibus, muito menos conta o dinheiro para devolver o troco, que termina um livro e logo começa outro sem tempo para respirar, no mesmo ritmo. Um personagem insólito, no mínimo.
A jovem morena, a da fila, que tinha se sentado a umas duas poltronas da minha, percebendo o meu espanto, se sentou ao meu lado e disse:
- Não liga não, moço, o Butler é assim mesmo. Todo dia ele lê uns dois ou três livros desses que têm em baixo da cadeira.
- Você o conhece? - perguntei, duas vezes feliz; uma porque alguém poderia me explicar o que estava acontecendo, outra, porque era a linda morena que estava ao meu lado.
- Claro. O Butler trabalha nessa linha há mais de dez anos. Ele mora perto da minha casa. Todos os dias nos vemos.
- Ele foi sempre assim. Quer dizer: ele não pára de ler nenhum minuto.
- Enquanto trabalha, não.
- Mas como?
- Não sei. O Butler é gozado. No começo todos estranhavam...Agora já se acostumaram com ele.
- Mas ele fala?
- Claro. Depois que ele sai do trabalho, conversa com todo mundo, brinca, joga futebol, faz de tudo. Ele é uma pessoa normal, apesar de, aqui no seu trabalho, parecer um idiota com esses livros todos. Aliás ele namora minha prima já faz mais de dois anos.
- Por que ele é assim?
- Como eu vou saber.
- Mas você não o conhece?
- Mais ou menos, a gente não é amigo, na verdade. Ele é amigo do meu irmão.
Muito estranho esse Butler, pensei.
- Como é o seu nome, garota? - perguntei.
- O meu nome?
- É.
- Dulce.
- Dulce, um bonito nome.
- Obrigado.
- Dulce, você sabe que horas o Butler pára de trabalhar, o seu horário de saída daqui do ônibus?
- Acho que às seis horas, quer dizer, 18 horas, se não me engano.
Olhei para o meu relógio: 17:l5. Mais 45 minutos e poderia conhecer esse tal de Butler.
- Dulce, você não quer tomar um suco comigo em algum lugar por aí, enquanto espero o Butler sair do trabalho?
- É que estou indo pra casa.
- Então, pode ser perto de sua casa. Não é lá que o Butler mora também?
- É. Tudo bem, aceito.
- Legal . Acho que vamos ser bons amigos. - Enquanto falava isso, baixei os olhos e admirei aquele maravilhoso par de coxas - e concluí - muito bons amigos. Ela percebeu e colocou as mãozinhas sobres elas, as coxas, obstruindo a minha visão.
E o Butler estava lá com os olhos na página e atendendo os passageiros como se nada estivesse acontecendo à sua volta. E todos, ao que parece, achavam a sua atitude normal. Apenas eu estranhava o fato de um cobrador não olhar para lado nenhum, exceto para aquele livro, cujo título tentei ler, mas, como a distância era um pouco grande, e a minha visão não ajudava muito, cinco graus de miopia, não consegui.
Finalmente chegamos ao ponto final. Dulce se levantou - e a mão escondendo as coxas. Aí ela falou:
- Vamos tomar aquele suco?. Chegamos. É aqui o ponto final dessa linha.
- Ah, é, vamos lá. - eu disse
- Como é mesmo o seu nome? - Dulce me perguntou.
- Guilherme, mas pode me chamar de Guila.
- Legal, Guila, vamos descer e tomar um suco no bar do Vinícius. Fica bem ali na esquina, pertinho da minha casa.
- E o Butler?
- Ele passa lá em frente para ir para a casa dele.
- Ah.
- Ele ainda vai demorar um pouco. Ele tem que fechar uma tal de planilha, acho que é isso, para passar o serviço ao seu substituto.
- Você está por dentro, ein?
- Aqui no bairro não acontece nada, mesmo... E foi o meu irmão que me falou isso.
- Seu irmão é...
- O Guga - ela disse rapidinho.
Depois de alguns minutos de espera, finalmente o Butler, o cobrador excêntrico, passou em frente da lanchonete em que eu e a Dulce tomávamos um suco de laranja cada um.
- Ei Butler, venha até aqui, tem um rapaz querendo conhecer você - gritou a Dulce.
- Agora não dá, Dulce, agora não posso.
Não era aquele rapaz com cara de debilóide que estava dentro daquele ônibus lendo, lendo, lendo. Até que parecia um bom rapaz, com uma cara, na primeira impressão que pude ter, até de otário.
- Vem cá, Butler, pare de ser caipira !- provocou a Dulce.
Ele veio.
- Sente-se aí, rapaz - eu disse ao Butler, que estava meio assustado, lembrando até ao velho cobrador.
- O que que você quer de mim?
- Não seja grosso com o Guila, ele é gente fina, Butler - interveio a Dulce.
- Nada, apenas conhecer você.
- Por que você quer me conhecer?
Dulce se levantou e foi embora. Me disse que gostaria de me encontrar novamente. Me deixou o seu telefone, que guardei na carteira. Continuei a conversa com o Butler:
- Achei você um cara super estranho, lá dentro do ônibus, no seu trabalho...
- Ah, então é isso?!
- É por quê?
- Todo mundo, no primeiro momento, me acha estranho, depois se acostuma.
- Mas, vem cá, me responda uma coisa: por que você lê daquela maneira?
- De que maneira?
- Pô, daquele jeito...não olha pra ninguém, nem mesmo para o dinheiro. Como você consegue fazer o troco corretamente?
- Eu sou o melhor cobrador da empresa, na opinião do seu Carlos.
- É... mas como?
- É muito simples. Esse sistema de troca, o dinheiro, é um troço super rudimentar.
- Rudimentar?
- Muito rudimentar. Você pegando o dinheiro na mão um dia inteiro, no final já consegue distinguir uma nota de dez de uma de cinco, ou, mesmo, uma moeda de um de uma de dez centavos.
- Mas como?
- Pelo tamanho, peso, textura, essas coisas.
- Você não erra?
- Nunca erro.
- Agora, por que você lê daquele jeito?
- O negócio é o seguinte: eu não gosto do meu trabalho, aliás de trabalho nenhum. Mas tenho de trabalhar para poder comer, beber, me vestir, essas coisas.
- E daí?
- Eu sempre gostei muito de ler. Desde criança. De escrever também. Tenho mais de cinco mil páginas escritas lá na minha casa.
- Você tem mais de cinco mil páginas escritas na sua casa... e trabalha de cobrador de ônibus?
- É por quê?
- Nada, não. Mas por que a leitura mesmo...
- Como eu disse, detesto trabalhar. Então eu só consigo trabalhar lendo. Não posso pensar que estou trabalhando, me dói muito...
- Quer dizer, então, que você lê para não saber que está trabalhando?
- Sim, há alguma coisa errada com isso?
- Você é um gênio!
- Por que “gênio”?
- Você descobriu o ovo de Colombo, a salvação do capitalismo.
- Que é isso, Guila, você está ficando louco?!
- Louco, eu?
- Sim, você mesmo!
- Está bem. Acho que estou ficando louco mesmo.
- Fica frio, Guila.
- Vem cá, Butler, quanto livros você acha que já leu?
- Uns dez mil, por aí, já perdi até as contas. Tenho que verificar no meu fichário lá em casa pra responder com precisão.
- Quer dizer que você tem um fichário também...desses livros?
- Claro. Tudo catalogado, por assunto, autores...
- E continua trabalhando de cobrador de ônibus?
- Por que a surpresa? Você acha que cobrador de ônibus não pensa, não é inteligente?
- Você parece um personagem do Melville ou do Kafka.
- Conheço muito bem o marinheiro batavo e o burocrata judeu. Eu sei o que você está querendo dizer com isso. Pouco me importa. Apesar de estar percebendo em suas palavras um certo preconceito, não ligo.
- Desculpa, Butler, não queria ser indelicado. Mas você nunca pensou em ser professor em alguma universidade, publicar o que você já escreveu, tentar uma vida melhor?
- Eu...não. Nunca pensei nessas hipóteses.
- Você deve ser internado urgentemente num hospício! É louco varrido!!!
- Só porque eu não gosto de trabalhar?!
- Deixa pra lá, Butler. Acho que vou embora. Vou dar uma volta pela cidade...Pensar um pouco. Até um outro dia. Prometo voltar para conversarmos. Eu sei que, hoje, você tem compromisso.
- Você sabe, né, vou encontrar a minha namorada, a Silmara. E ela fica uma onça quando me atraso.
Fui pra minha casa espantado com a inteligência do Butler. Como é que pode ainda existir pessoas como ele neste mundo?
Voltei todos os dias àquele bairro para conversar com o Butler, conhecê-lo mais, depois que ele deixava o trabalho. E quanto mais eu o conhecia, mais espantado ficava com a sua capacidade intelectual, seus conhecimentos de filosofia, história, literatura. Butler se tornou, para mim, um grande amigo, um grande mestre. Ele, de fato, era um gênio.
Quando eu entrava no ônibus circular lá estava ele, impassível, com um livro nas mãos, sem olhar pra ninguém, trabalhando, sem gostar de trabalhar.
Fiquei sabendo, depois de muitos anos, que o Butler havia morrido num acidente automobilístico. O ônibus em que trabalhava capotou e o velho Butler foi encontrado, já sem vida, com o tomo número um das obras completas do escritor inglês G. K. Chesterton, sobre o seu peito. Morreu feliz. O que me deixou magoado, é preciso que se diga, foi o fato de um gênio como o Butler morrer desse jeito, incógnito. Nenhuma linha a respeito de sua morte foi publicada nos jornais . Pensei comigo: “Um dia ainda publico as obras completas do grande escritor Butler... como é o nome completo dele, mesmo?”
Quando falei para a minha esposa Dulce o que tinha acontecido com o Butler, uma pequena lágrima caiu de seus olhos, e escorreu pelo rosto.
Vigo
Cadê o latão, Vigo? Ele não ficava bem aqui, nesse canto de praça, era aqui, sim, Vigo, posso até sentir o cheiro do danado, meu estômago entende dessas coisas. E, aí, Vigo? Era aqui, sim. Acho que estou meio sem faro; também faz quanto tempo que vagueio por essas bandas aqui do cais. O cais, ah, o cais, como tudo isso mudou, as ruas não são mais as mesmas, os carros, esses barcos miniaturas de asfalto, me incomodam mais que esse meu pé esquerdo. Falando nisso Vigo, meu pé não dói mais, não, minino. Será que curei dessa dor que trago comigo desde quando ainda corria pela praia do Pina, ein Vigo, faz quanto tempo isso, ein? Que coisa essa de medir a vida em dia e noite, só um homem como Deus poderia pensar em um negócio tão dificultoso de resolver. Vamos voltar, Vigo, vamos ver se a gente começa desde o início.
Bom dia, seu Mundinho, o senhor não tem nada pra nós hoje?
Não era o seu Mundinho, Vigo. Era não? Se era, ele nem tchum.
Quando tudo começa a dar errado na vida da gente é melhor nem tentar muito. Será que não é essa a rua, Vigo? E aquele coqueiro ali, aquela praça acolá, e isso tudo aqui... Será quer acordei com o pé esquerdo hoje, Vigo? O que doía e nem dói mais.
Laraliralalá vou eu. Laralilalá sou eu. Vou descansar um pouquinho aqui embaixo desse meu coqueiro. Talvez daí tudo pode voltar ao seu lugar como antes. Corre Vigo, corre.
Vigo é um bom menino, mas já está, como eu, com o faro meio ruizinho, acho que é muita chuva, como tem chovido aqui no Recife nesses últimos dias, faz tempo que não caía tanta água assim aqui por essas bandas. Vem Vigo.
Assim Ilcinha, assim, vem com essa linguinha marota, vem, como é bom, é bom, ai! num faz assim não, dói, uma dorzinha gostosa, mas dói...
Acho que nem consegui dormir direito. E essa meleca de novo. Vigo vem aqui lamber, vem. Vigo sempre me limpa direitinho, só tomo banho quando vou pros lados da praia, a isso sim é que é vida, banho de mar, aquele sol quentinho enxugando a gente, dá até vontade de viver aqui no Recife.
Acho que agora vou achar aquele latão: tô com uma fome de rachar o caqueiro. Olha ele ali, olhe Vigo, o danadinho, tava aí desde quando, ein seu moleque? Será que nós passamos por ele e não vimos. Vamos ver o que tem de bom hoje pra comer. Um, que delícia, macarrão com carne de sol. Meu prato preferido desde que me lembro por gente. Lá em casa, lá no interior, papai - mamãe não conheci, não - fazia cuscus, mas eu não gostava muito, não. Preferia mesmo a hora do almoço, quando vinha aquele macarrãozinho todo branquinho com uma cepa de carne de sol, era o céu aquele dia. Depois tinha que pegar na enxada, aí é que era o inferno.
Vem Vigo, vem comer, vem. Esse latão tarda mas não costuma falhar. Esse cão é danado pra comer, se eu não sou rápido - como sempre fui - ele me rouba as melhores partes, esse danado. Mas eu divido direitinho com ele. Tem que dividir, né, já dizia o padre lá do meu interior, quando ainda brincava de jogar côco no gol; eu mais a molecada toda. Eu não era muito bom na coisa, não, mas meu pé é duro que nem pedra, aí me punham no jogo.
Com o bucho empanturrado, vou dar as voltas pelo porto, tem sempre um companheiro com quem trocar uma prosa, tomar uma cachacinha, que não sou bobo nem nada. Quando tenho algum dinheiro, às vezes tenho algum, sabe, junto com mais dois ou três, e compramos um litro da mardita. É bom, descansa a cabeça dos tormentos, cê precisa ver.
Laralilalá vou eu, laralilalá sou eu. Tou contente hoje. Acho que tou sim, essa música não me sai da memória. De vez em quando acordo com alguma música na cabeça, não é sempre não, mas quando a diaba encasqueta é duro tirar da cachola, mas acho até bom. No começo, quando achei o Vigo aqui, miudinho, um ratinho preto todo se coçando e chorando pela rua, ele não gostava não que eu ficava cantando, mas agora já se acostumou, e já mexe o rabinho quando as palavras começam a sair por essa boca aqui. Fica contente, sim, o Vigo, ele gosta. Acho que é até uma mensagem do nosso Senhor Jesus Cristo lá do céu; é que sempre que a música vem logo cedinho a comida vem dobrada. É bom, cê precisa ver.
Tenho um companheiro que puxa um burro-sem-rabo - é assim que as pessoas chamam o carrinho dele, o Miguel. Ele sempre tem dinheiro, mas nem sempre quer que eu fique perto dele, não, mas acho que hoje, como a música veio desde cedo, acho que ele deve estar que só me espera. Ele, sim, toma bastante da branquinha, diz que traz a felicidade que não teve na vida. Não sei não. Eu sou feliz. Tinha o pé, sabe, que doía, incomodava pra caminhar, mas agora parece que sarou bem sarado. Tem também esse mardito do estômago, que, de vez em quando, também tasca a doer um pouco, por fome, sabe, mas não é todo dia, não, principalmente agora então que descobri aquele latão, essa preocupação não tem tomado mais meu tempo, não. Sempre tem um latão que ajuda a gente, é preciso ter paciência pra conseguir achar ele. Mas, achou, tá de bom tamanho, tá feita a vida.
Parece que o Miguel num tá por aqui, não é estranho, não, Vigo? E aquele burrico ali sozinho, vazio, sem niguém, não é dele, não? Nunca vi isso de acontecer com o Miguel. Será que ele tá desgostoso hoje, logo hoje que o dia parece ter nascido pra mim? Vou dar uma espiada por aí, talvez encontre o danado do Miguel enrabichado com alguma garrafa por essas bodegas da vida.
Miguel? Cê não sabe, não?
Sei não seu Néia.
Então, Miguel bateu as botas, deve tá lá visitando São Pedro uma hora dessa...
Morreu?
Atropelado.
Atropelado?
É, um caminhão de lixo.
Coitado do Miguel, tava meio caidinho, meio triste nos últimos dias que vi ele, mas fazer o quê - mas justo um caminhão de lixo, toda a sua vida ele reclamava desses bitelos; coitado mais ainda do seu burrico que vai ficar desacompanhado por esse mundão de deus. Eu não tenho mais saúde pra empurrar burrico nem nada. Enquanto tiver o latão não vou me enroscar em burrico nenhum. Num sou troncho, nem nada, eu ein!
Sai daí de cima, Vigo, sai já. Miguel morreu e merece respeito. Sai já de cima do burrico. Sai!
Laralilalá...
Que mané precisa tirar o burrico daí, Néia, lá sou homem de ficar mexendo em coisa de gente morta, vê se enxerga...
Que isso Néia, que isso; corre Vigo, acho que o véio está ficando louco, eu ein, que mané atrapalhar a sua venda, eu ein. Tou levando a minha vida no sossego e lá vem esse véio querendo me mandar pro sufoco, em não! Deus do céu não perdoa esses pecados quando o assunto é morte, perdoa, não, desses eu sei, e como sei.
Inté.
Vigo, que canseira deu o Néia, ein? Vou até decansar um pouco aqui nesse canto, de repente a Ilcinha vem de novo me visitar, gosto muito da Ilcinha, sabe, é uma menina que tinha lá no meu interior que gostava de bolinar com a molecada, eu mesmo bolinei muito com ela, mas agora é ela que me bolina, é bom, sabe, pra quem vive sozinho de gente é muito gostoso, cê precisa ver! Mas acho que agora ela não vem não, só vem de vez em quando, é que quando mais eu quero, menos ela aparece, a piniqueira.
Tá ecurecendo, e é melhor a gente esquentar os cambitos e voltar pro nosso canto, lá perto do cais. Andamos tanto e só teve de bom notícia de morte hoje, credo em cruz. Eu que achava que ía ser um dia e tanto. É melhor a gente rezar um pouco que é o melhor que a gente faz, Deus me livre, sô. Vem Vigo, vem comigo. Laralilalá vou eu. Laralilalá sou eu.
Hoje parece que o tempo não vai mandar água, não. O céu tá limpo que nem roupa de padre. E azul que só vendo. Vamos pra outro lado hoje, quem sabe a gente não descobre outro latão mandado por nosso senhor Jesus Cristo lá do céu.
Olhe aquele ali, olhe, tem cara de que tem coisa boa pra nosso bucho, olhe Vigo. Corre lá pra ver, corre. Vigo é esperto e sabe muito dessas coisas de procurar comida, sem ele minha vida seria uma dificuldade atrás da outra, só eu sei o valor desse meu cachorrinho. E aí, Vigo, que tem de bom pra nós?
Mas como tem gente nessa calçada aqui deste lado do centro, tem é uma multidão que só na rua. Tem Vigo? Tem não né, eu sei, quando tem essa penca de gente na rua, é aquele desmanzelo, tem muita briga, muita coisa ruim, que não gosto não, nem de ver. Vem, vamos sair daqui, desse atropelo.
E esse fumacê danado que sai dos carros, esses lagartos de uma figa. Além de não ajudar em nada, só dá atrapalho na vida da gente. Lá no interior não tinha dessas coisas, não, viu Vigo, lá era só carroção de boi, era meio lerdo, mas - tirando os peidos que os bichos dava, e não era sempre - a gente ía tranquilo pra todo canto. Papai que dizia: um carro de boi é melhor que muitos homens, que só sabe subir nas costas da gente, esses safados. Meu pai era tão homem de visão que nunca me esqueci de seus ensinamentos.
Vamos voltar para o lado do porto, que é o melhor que a gente pode fazer. Lá, é na certeza, que sorte é coisa de quem tem muito tempo pra perder, e não é o nosso caso, né Vigo?
A musiquinha até que não veio hoje no meu senso. Acho que ela foi acordar na cabeça de outro alguém. É bom também. Todo dia aquelas letrinhas na cabeça enche o saco da gente. Vamos comer, vamos Vigo, tô de novo com o estômago só que dói aqui do lado da barriga. Corre, vem.
Viche, olhe Vigo, tem gente querendo bulir no nosso latão, deixa não, Vigo, pega. Vigo sabe quando quero que ele pegue no calcanhar de algum peçonha. Ele não é tonto nem nada. Isso mesmo, Vigo, mostre quem é o dono, mostre.
Mas que diabo, chegamos meio tarde, aqueles danados comeram nossa comida, vem cá que o Vigo vai mostrar pra vocês com quantos paus se faz uma jangada. Seus tabacudos. Hoje o negócio parece que vai ser feio, Vigo, ter que achar outro latão aqui por essas bandas, nunca foi bom negócio, ainda mais com essa concorrência dos diabos que cada dia aumenta mais. Que será isso, Vigo? Será que os interior tá expulsando o povo da terra de novo, que nem no meu tempo, mas isso já faz mais de anos.
Vamos atrás de outro, vamos, que assim com o estômago chiando não dá pra ficar vivo aqui nesse pedaço de mundo, não, cê tá é ficando louco.
Tem uma budega ali naquela esquina, vamos ver se a gente arranja algo para amançar o bucho.
Tem não, é, seu sovina de uma figa, tem não, nunca tem mais nada, é, seu larápio, eu sei das escapadelas que o senhor dá nessas noites de lua cheia, sei sim, vou é contar pra sua patroa, cê vai ver.
Não, meu Vigo não, ele não tem nada com isso, larga ele, larga, eu num conto pra ninguém, tava só brincando com o senhor, conto nada, não, larga o meu Vigo, larga, vem aqui, vem Vigo, morde ele, morde, larga o meu vigo, pelo amor de Deus, larga.
Branquinha
Sentadinha no banco da praça, diante apenas de deus, ela mostrava os tornozelinhos torneados, e um colarzinho, ali, íntimo. Vozes em minha mente fustigando, volição. As nuvens, em pétalas abertas, dando licença ao sol, o ambarino voyeur. Cada movimento dos pelinhos da perna dela, cada ventinho, cada, um Cézzane, um Gauguin, quem saberá?
No último domingo tomamos vinho português. Aquele dia, um sonho, não o esquecerei jamais. Os caquis sobre a mesa, no porta-frutas, seus lábios. Bagas doces bagas vermelhas - bagas capazes de ferir de morte o coração mais duro, só ao mordiscar, lambiscar, iscar, tudo. E que olhar... Fico atordoado só de pensar.
Cada gole do vinho, suas faces mexiam-se num balé frenético, ruborizando, e os caquis-lábios me cutucando os sentidos, onde coloco as mãos: sobre a mesa, no bolso, onde, meu deus? O que está acontecendo com os meus joelhos?!
- Talvez Dostoiévski tenha entrado fundo, tão fundo, na alma do ser humano, que, no final, não conseguiu se distanciar dos personagens que criou.
Ela disse. Nem Kraus nem Nietzsche acreditariam. Mas a frase me é tão insignificante que nem prestei a atenção. Tinha outros assuntos para pensar. Sua delicadeza, sensibilidade, não fragilidade, seu perfume que enchia a sala de meus pulmões com aquela fragrância doce-juvenil. Descrever-lhe o rosto? Seria pretensão. Teria que inventar palavras novas.
Um pardal cantavadiando sobre nossa cabeça, na árvore que faz sombra no banco da praça onde, depois de muito, velho, experiente (será?), comecei a viver. A pardoca só olhava, de esguelha, lúbrica.
A carta que me escreveu com uma letrinha toda barroca, traço preciso, com detalhes imprevisíveis a respeito da pintura de Van Gogh. O pintor, escreveu, foi vítima de sua família.
Vindo da escola, com passinhos miúdos, a saia até o tornozelo. Abraça o caderninho como se fosse um passarinho com frio no inverno rigoroso. O seu trotezinho de puro sangue faz a bundinha balançar, saliente. Nenhum homem à sua frente. Todos, estrategicamente, quando estão adiantados, param para amarrar os sapatos, apanhar uma flor. Todos conferem à distância. Sonham. De seu pescocinho voam flechas perfumadas, coloridas, sobre o desespero masculino. Ela sabe disso. Descobriu-se sozinha, sem ajuda. Está adorando o seu último esporte: matar, com a beleza, homens do coração. Aliás, esporte essencialmente feminino, preferido por todas (as belas). Nos finais de semana, usa calças apertadas, pretas ou azuis e parece também que fuma um pequenino cachimbo...nem sempre com tabaco. Como invejo este cachimbo! Daria a vida para chegar próximo daqueles caquis.
Nas tardes, viro um vampiro. Não o de Curitiba, claro, apesar da semelhança.
Nunca vou desistir. Ontem escrevi uma carta, que não vou mandar. Preferi, mais pragmático, falar diretamente. Passei a noite decorando o texto. Planejo persuadi-la a me seguir até o rio.
No ônibus: finge que não me vê. Está indo para o centro. Toda de branco. Um lírio. Os cabelos ainda molhados, curtinhos, castanhos, o pescocinho insinuante, arguto, à mostra, desembocando na camiseta; penso enxergar um pouquinho da pele de suas costas. Vejo só as penugens.
Observo de longe: seu vício: roer as unhas. Minúsculos pedaços do esmalte nácar precipita-se para a sua lingüinha vermelha, uma ostrazinha, que imagino... Usa uma sandalhinha de couro, acho que francesa, pelo talhe. Pena que esconda o pezinho com uma insípida meia branca, masculina- intempestiva. Ela fecha os olhinhos e fica assim, por alguns instantes, absorta, apertadinhos.
Quando se levanta do banco, sua blusinha levanta-se também, deixando, ah, meu deus, nu o pequenino e solitário e inerme umbiguinho, de onde tudo começou, e eu me delicio, de longe, de meu banco, emocionado, escondido em minha loucura magnética, procurando não incomodar, deixando seus movimentos, o seu teatro particular, a sua exibição, para mim, acredito.
Sábado. Ela vai ao Armazém. Tenho uma chance.
Oi, como vai, tudo bem, quanto tempo? Nem eu acredito em minha cara de pau. Ela parece gostar de minha mentira. Todas gostam. Todas mentem. Conversamos banalidades. Meu coração está quase pulando em seu discreto decote. Me acompanha até a praça Parteira Bernardina. Não sei o que falar. Tento ser engraçado, elas gostam, mas não sou feliz. Tudo bem. Nunca fui bom em contar piada. Tudo bem. Deixo-a na porta da casa de uma amiga, que não pode me ver - vergonha, talvez -, com um leve beijinho nas mãos. Promete me convidar para uma festa em sua casa...quer que, não acreditei, conheça seus familiares...Me disse que sou um bom amigo... Não sei onde estou nem pra onde vou, tudo, parece, mudou de lugar.
Basta uma girada sobre si mesmo com os olhos fechados para o homem se perder no mundo.
Terça-feira. Fico marcando no relógio os segundos que faltam para ela sair de casa. São os segundos mais longos de minha vida. Ela sai. Me escondo. Sigo-a até a parada de ônibus. Resolvo não segui-la hoje. Vou escrever uma carta. Ainda não respondi a que me mandou.
Não consigo escrever. Tenho que escrever. É necessário que escreva.
Ricardo, jornalista, editor de cultura do jornal local, passa pela minha casa e me convida para jogar sinuca. Vou. Está um bom dia para a diversão. Talvez Rica me ajude. Estou um pouco velho e minha conversa deve estar um pouco envelhecida também. E branquinha precisa ser convencida de que não sou o velho que ela está pensando. Por trás dessa calva há um jovem louco pra agarrá-la, jogá-la no chão...
Miríades de miragens sobre o pano verde-ervilha.
Apanho um livro. Não consigo ler.
Estou ficando louco!
Cadê você, branquinha? O que é preciso fazer para beijá-la? Não sei como. Vou acabar agarrando você, fazendo uma besteira. Não. Não é uma boa tática. Mas qual é a tática? O que devo fazer, meu deus? Deus, você que está aí em cima, vendo o meu desespero, vê se me ajuda!
Deus não me ajudou. Deus não ajuda ninguém.
O crepúsculo masculino
aconteceu depois da segunda grande guerra. O final de uma era. O final de uma filosofia. O final. Uma filosofia. Nova? Como sofro nestes tempos femininos!
Ricardo me leva pra conhecer umas amigas. É uma casa de licenciosidades, como se diz. Me apresenta algumas belas garotas, embora eu tenha o pressentimento de que forcem um pouco o sorriso, uma leve ruguinha no canto da boca denunciam o que acabo de dizer, e, ainda, observo, não têm um décimo da classe de branquinha, principalmente quando ela tem um cigarrinho entre os dedos. Diz que posso me divertir.
Uma culpa, o coração apertado, a dúvida crucial, um óbice momentâneo. Não consigo me divertir. Branquinha não sai de minha lembrança. Nem se quisesse conseguiria abraçar outra mulher. A morena que "fica" ao meu lado, solícita, parece perceber o meu embaraço. Me despeço dela e de Ricardo e vou-me embora. Em casa, a dor, acho, é mais suave. Um erro. Um pássaro na gaiola, preso, alucinado, e sem saída, nenhuma, aliás, uma, tenho medo, não sei o que acontece comigo, depois de velho, esse medo, medo, medo. Vou até a casa de Branquinha, que fica perto da USC. Não vou. Vou. Não fui. Jamais verei Branquinha!
Me decidi: vou acabar com tudo: no rio: vou conversar com ela: a quero. Estou vivo. Como nunca. Vivo. Viva!
Não fomos passear no rio. Branquinha não quis. Teve medo, acredito. Me convidou para almoçar no próximo domingo em sua casa, como havíamos combinado outro dia. Mas não me lembrava de ter combinado isso com ela. Se Branquinha diz que combinamos, quem seria eu para negar. Até porque ando bebendo demais. Deve ser isso. Hoje é quarta-feira. Tenho quatro dias para me preparar...e sofrer. Disse-me que tem uma surpresa. Estou ansioso. Será? É bem provável que não. Voltei correndo para casa rindo, chorando, rindo, falando sozinho, não acreditando, me martirizando: devo ter esperança? Ela deve saber sobre os meus desejos. Claro, as mulheres sempre "sabem". Faz parte de seus instintos.
O silêncio, esse vazio. Os vidros da janela embaciados. O inverno é uma questão de dias. Os carros, na rua, lá fora, desfilam como cobras metálicas, ruidosas, pelo paralelepípedo. Rodas roendo o sossego das horas.
Estico o meu pescoço para fora. Espio por sobre o parapeito. Quase fico sem meus óculos. Dois senhores conversam sobre política sob a janela. Fazem previsões que não terão tempo de ver. O senhor da direita, com um chapéu puído, preto, mostra, com as mãos, uma senhora que atravessa a rua, próximo à esquina. Bem vestida, roupas modernas, sóbrias, e carrega um perfume doce à sua volta. O senhor da esquerda gesticula. A mulher apenas os observa, de soslaio, com um parcimonioso desdém.
Retomo o livro que iniciei na segunda-feira: "Os néscios e os sensatos são igualmente inofensivos. Somente os semiloucos e os semiprudentes são perigosos".
Amanhã é domingo. Amanhã.
Acordo bem cedo. Uma força de expressão. Nem dormi à noite.
Algo de anormal está me acometendo. Nunca, que eu saiba e sinta, fiquei tão obcecado por uma idéia. Será a velhice? Quando jovem só se pensa nisso, embora, no meu caso, pouco fazia neste sentido. Mas percebo que, agora, com Branquinha, só penso nela e estou me esforçando, apesar das limitações que tenho. A velhice faz o homem exacerbar seus sentimentos? Deve ser isso. A velhice, seletiva, caprichosa, faz o homem passar, sem medo, apesar de algum medo sempre existir, vergonha pelos seus instintos masculinos. A paixão não é uma flor, como Branquinha. É uma senhora, velha enrugada, sem vergonha, prostituta aposentada, prisioneira contumaz de madeixas grisalhas. Será?
Sábado. Fui ao Armazém esperando encontrar Branquinha. Não encontrei. Não deve ter saído de casa ainda. É cedo. Vou esperar um pouco. Será que ela ainda se lembra de mim? A surpresa que me reserva, talvez?
Não haverá almoço. Não fui convidado para almoço algum. Esqueça!!! Nenhuma jovem em flor convidaria um velho pobre para almoçar em sua casa. Já convidou uma vez. Será o meu desejo apenas fruto de uma obsessão? Se for, tanto melhor. Não tenho muito o que perder, eu que já perdi muito, sempre perdi, sempre perco. Não é loucura. Não é obsessão. Percebi desde o início. Ela me reserva uma surpresa. Pronto. Quero falar uma coisa muito importante pra você, Branquinha!
Entrei na casa acompanhado de um senhor. Mais novo que eu. Será? É o pai de Branquinha. Homem sisudo, casmurro e parece não se interessar em conversar comigo. Nem eu tenho assunto para ele. A sala de jantar, de estuque branco, esconde, entre a mobília, algo que me interessa. Branquinha. Sua mãe é atraente, simples, uma dona de casa. Me fala sobre a vida na cidade, quando chegaram expulsos da Guerra dos Cravos. Fala ininterruptamente.
Branquinha me olha. Olho para Branquinha. Não queria estar ali. Branquinha me fez estar ali. Seu rosto, lívido, um pouco escuro embaixo dos olhos. Chorou? Não. A mãe de Branquinha gosta de conversar. Maria Carolina (Branquinha, claro) sempre foi uma excelente garota, desde a infância, nunca teve pensamentos estranhos à sua idade, e sempre obedeceu os pais.
Não a tenho mais. A tive um dia?
O almoço foi servido. Bacalhau à portuguesa. Sem vinho. Um suco de uva em seu lugar. O pai de Branquinha não pode mais beber, me confidencia: “ele quase morreu de cirrose hepática, de tanto beber”. Percebo um leve desconforto nos gestos de Branquinha. Rápidos, ríspidos, certeiros. Não são gestos de uma garota intuitiva como Branquinha. Ela me diz, meio sem jeito, que admira a atriz Maria de Medeiros e que adorou o filme Henry e June, principalmente o papel que a atriz portuguesa interpretou no filme. Eu gosto, como ela, de homens mais velhos, como o Miller. À mesa do almoço, junto com seus pais. Meu coração se desespera de alegria. Tenho dificuldades em segurar os talheres. Será que ela quis dizer alguma coisa com tal afirmação?
Com licença, vou ao banheiro. Não estou passando muito bem. Com licença Branquinha. Não consegui parar de rir, olhando para o espelho. Belisco minha face. Dói. Faço força, interpreto o velho papel. Volto. Estou bem. Acho que é o frio.
O almoço estava ótimo. Quando nos veremos? O que você queria dizer com “eu gosto muito de homens mais velhos...”
Gostou da minha surpresa?
Não consigo encontrar palavras em meu parco repertório. Branquinha está em meu quarto. Ela senta-se na poltrona. Inicia uma gargalhada. Não páre!. O que farei? Este é o meu momento. Vou me aproximar e beijar-lhe a nuca, acariciar o delicado e lascivo pescocinho. Não posso. Posso. Vou. Branquinha se levanta e me dá as costas. Estará tirando a camiseta? Não acredito!
Posso me deitar sobre o seu corpo?- Ela me pergunta já adivinhando a resposta, que nem tento dar. - Tire a roupa, por favor.
Ainda não consigo acreditar.
Sua pele é macia, como supunha. Suas mãos massageiam as minhas costas e os seios, pequeninos como um casal gêmeos de gazela entre os lírios, se esfregam em meu peito. Ela geme em minhas orelhas. Passa a lingüinha em meu pescoço, em meus peitinhos. Ai! Ela me morde os lábios. Um filele de sangue surge estre os seus dentinhos. Ela é ágil. Uma leoa sobre uma presa indefesa. Deixo que trabalhe.
Há dois dias não vejo Branquinha. Ela me ama. Ela me quer.
Branquinha não mora mais aqui. Foi para Portugal morar com os tios. Ela quis ficar mas achamos melhor para ela, que quer estudar artes plásticas. O sonho da sua infância é ser uma grande escultora, como a Camile Claudel. Portugal é um lindo país e a Universidade de Coimbra é uma das mais importantes da Europa. O senhor conhece?
Sento-me no banco da praça onde me sentei com Branquinha algumas vezes. Olho para todos os lados. A vida é assim.
No galho sobre a minha cabeça, um gavião come um indefeso pardal macho sob o olhar incrédulo da pardoca.
Assim.
LONTRA
Na saída de uma boate dois amigos de infância se encontram depois de mais de 15 anos. Conversam. Betinho, mendigo, e Lontra, bandido.
Lontra
Vou mesmo, cara. Vou esfolar uns riquinhos bunda-moles hoje à noite. Sem essa, o meu. Vou mesmo é nadar de braçada. Tem uma morena gostosona me esperando lá no centro. E tô na pindura, duro, ta sabendo? Não vou perder a pequena só porque estou duro. Que é isso, o meu. Sou o Lontra, cara, tá ligado, L-o-n-t-r-a. Escreve aí, Lontra! E você vai ficar aí nessa de pedir grana pra grã-fino. De araque, meu. Granfa não dá nada pra ninguém. Se quiser tem que sacanear...
Betinho
Tô arrasado, irmão, dá só uma olhada pra mim. Não quero mais nada... nada nesse mundo.
Lontra
Que papo de viado esse aí cara. Olha lá, dá só uma uma bicada praquela bundinha ali, toda perfumadinha, travesseirinho pro Lontrinha. Você não é a fim de dar uma mordidinha naquela carne, não? Virou viado. Vem cá: você já comeu umazinha dessa qualidade? Nunca, né meu...nem chegou perto. Vou te contar um segredo: é bom demais, uma delícia, não tem coisa melhor no mundo... Agora você me vem com esse papo.
Betinho
Faz mais de cinco anos que não trepo. Acho que já esqueci como é que faz. Mulher pelada? Nem sei mais como é que é.
Lontra
Cara, escuta o que eu tô te falando: vou te dar uma força. Vamos dar um jeito nessa sua vida de merda. Primeiro tem que cortar essa porra de barba, tomar um belo banho, meter uma águas-de-cheiro da hora. Você tá parecendo um gambá...Te liga rapaz. A vida tá aí. É só viver. Se não temos grana, temos músculos e coragem e, claro, um belo canhão - mostra o cano que tem enfiado na cintura - . Se a mina não dá na moral, na diplomacia, tu manjas né, vai na marra. Não tenho escrúpulo nenhum. Escrúpulo é coisa de otário, coisa de carola que a gente aprende naquela merda de infância. Tá ligado?
(Betinho abaixa a cabeça e coloca as mãos no rosto. A porta da boate se abre e o som invade a rua. Lontra ensaia alguns passos de dança. Aparece, de repente, um casal de namorados.)
Lontra
Ei, aí, ô bacana, tem um cigarro pra me descolar?
Dá uma piscadela para o Betinho, que ainda está cabisbaixo.
Lontra ( para Betinho, baixo)
Olha só pra isso: que material! Dá uma olhada, cara, dá só uma olhada na mina do cara...que pele...que pernas!
O casal finge que não escutou Lontra pedindo cigarro.
Lontra
Ei, aí, ô bacana, tô falando contigo e quem tá falando aqui é o Lontra, tá ligado. Vai dar essa merda de cigarro ou vou ter que aí buscar?
O rapaz, amedrontado, oferece o maço. Lontra pega e não o devolve.
Lontra
Valeu, irmão, pela força. Mais tarde a gente se encontra...na saída...tenho um assunto pra ter contigo e com a sua namorada - Lontra dá gargalhadas. Betinho faz sinal com a cabeça, como forma de reprovação.
Betinho
Deixa eles pra lá. Não te fizeram nada.
Lontra
Não fizeram o caralho!!! O cara já nasce em berço de ouro, não faz porra nenhuma na vida e ainda ganha de bandeja essas bocetinhas gostozinhas...ficam caindo nos seus pés.. E eu, irmão, e eu? Nós, cara. E nós? Se a gente não batalha, vai à luta, nada cai do céu. Bicho, passei a minha infância toda comendo bagulho, arroz e feijão, bicho, só, mais nada. Olha pra minha cara. Tá vendo o sinal da miséria? Claro que tá vendo: num teve queijinho nem danoninho não. Só bagulho. Alguma coisa tá errado. Claro. O que ele tem que eu não tenho? Tenho boca, nariz, orelhas, igual a ele e...um baita dum caralho gostoso...Pergunta pras minas lá na vila a respeito do Lontra, pergunta, tu ver! Por que só ele come coisa boa e eu tenho que comer carne de pescoço, ficar pra escanteio?
Betinho, de repente, se levanta, e , num gesto agrressivo agarra Lontra pela camisa.
Betinho
ninguém tem culpa de você ter nascido naquela boca de merda que você nasceu!
Lontra dá uma porrada em Betinho, que cai no chão.
Lontra
O que é isso, meu irmão? Tá a fim de morrer. Fica na sua, seu bosta, senão eu arrebento essa sua boca suja, nojenta, esse esgoto aí embaixo desse nariz podre. Seu merda! Bunda mole!
Betinho
Pára com isso, pára... Desculpa, Lontra...
Lontra
Que desculpa o caralho. O cara tem culpa, sim, ele e todo mundo que tá dentro desta bosta de boate. A minha mãe, tá ligado, a minha mãe, a dona Conceição, saca né, a dona Conceição, aquela fudida, deve ter trabalhado na casa desses filhos-da-puta aí, lavado cu desses filhos da puta. Pode crer. Minha mãe foi faxineira na casa desses filhos da puta. Trabalhou pra caralho. Deu duro. Acordava todo dia às quatro da matina.
Betinho
Pára com isso Lontra...
Lontra
É isso aí mesmo. Olhe pra minha mãe hoje. olhe pra ela, olhe! Olhe pra dona Conceição. Virou um buta bofe, largada, pobre, na sargeta, e esses filhos da puta aí na maior, comendo do bom e do melhor e minha mãe, cara, e minha mãe, cara ((chora. Põe as mãos no rosto. )
Betinho
Não chora não, Lontra. Fica numa boa. Senta aqui. Vamos levar uma idéia. Lembra da moçada daquele tempo. Puta tempo bom aquele...
Lontra
Tô fudido, cara. Fudido. Não tá fácil se descolar nessa merda de mundo, principalmente nascendo pobre que nem nós...
Betinho
Mas já vivemos pra caralho, em Lontra. Vem cá...
Lontra
Meu irmão, escuta isso : tô a fim de comer coisa boa, vestir uns panos legais e traçar só mulher gostosa, já comi muito bagulho por aí, não quero mais. Tá escutando Betinho. Tá escutando? E se tiver que meter mão em cumbuca pra conseguir o que quero vou enfiar mesmo, sem medo, falou. Ô Lontra, irmão, escuta isso, o Lontra não tem medo de nada! Nada!!!
Betinho se levanta. Tem sangue no canto da boca. Sai para o lado. Dá uma olhada de soslaio em Lontra.
Betinho
Por isso que estou nessa merda que você tá vendo. Não tenho mais coragem pra nada. Tenho a maior preguiça do mundo. Não gosto de fazer nada. Eu peço esmola, sabe pra quê? Sabe, Lontra? Pra ser humilhado, meu irmão, ser humilhado, pisado...Foi o que sempre quis.
Lontra
Que isso, irmão. Ô Betinho o que é isso? Sai dessa, aí, cara. Desculpa Betinho. Taí, irmão, desculpa. Você não tem nada a ver com as minhas neuras. Taí, irmão.
Betinho - Não é isso Lontra...
Lontra
Lembrei de um lance super legal, irmão. Daqueles tempos. Puta que o pariu. Betinho, se tá lembrado da nossa professora de matemática, a dona Maria Tereza, aquele mulherão?
Betinho
Claro que lembro, como poderia me esquecer daquele rabão.
Lontra
Mas não é dela que eu quero falar, mas da filha dela, aquela lourinha, chuchuzinho, lembra? Lembra daquele dia quando nós, eu você e Gavião, mano velho, tentamos comê-la depois da matinê no cinema, atrás do banheiro, lá na praça.. Tá lembrado? Aí pintou aquele milico filha da puta e cortou o nosso barato... Lembra da bundinha dela...Toda branquinha... e escapou.
Betinho
Quase nos fudemos em Lontra. O mega queria nos prender. Nunca me esqueci. Toda vez que vejo um milico na minha frente lembro daquele dia.
Lontra
Então, cara, aquela mina, a filha da dona Maria Tereza, virou o maior boing, cara...dizem que casou com um bacana.
Betinho - Gente fina é outra coisa.
Lontra
Betinho...Vou te falar um negócio. E vai ser pelos bons tempos. Vamos dar um jeito nessa sua cara aí, ô meu. Vamos dar um jeito. Vamos meter uns panos na sua vida... Vamos lá, cara, sai dessa. Eu tenho uns panos bacanas lá no barraco - vou te quebrar essa pelos bons tempos, mas não vai folgando, não, em irmão - Vamos dar um trato nessa sua cara escancarada, meter um cheiro na sua vida ...
Betinho
Que isso...que isso, Lontra. Não tô muito a fim, não. Não quero fazer nada. Tô numa boa, Lontra, pode crer.
Lontra
Numa boa, o caralho.
Betinho
Vamos fazer o seguinte: você me paga uma caninha ali no boteco que já é uma grande força. Tá legal?
Lontra
Larga a mão de ser bunda mole, Betinho.
Betinho
Não quero saber de mais nada...
Lontra
Ah é, então foi isso? Foi mulher que te fudeu. Não me diga que você caiu nessa merda por causa de mulher? Ô Betinho, o que é isso?
Betinho
Não foi nada do que você está pensando...
Lontra
Ô Betinho, vamos deixar de chaveco. A gente pega emprestado um carrão de algum granfa aí, dá uma chegada lá no meu barraco e bota pra quebrar, falou, aí, ô derrubado!
Betinho
Sem essa...
Lontra
Sem essa o caralho. Você vai, e acabou! Tá me ouvindo? Eu sou o Lontra, irmão, e toma cuidado comigo. Porra não é todo dia que acordo querendo dar uma força aos fracos e oprimidos. Então aproveita, irmão. Não é todo dia que tem pão quente, não...
Betinho
Não vai dar...
Lontra
Não vai dar, ô caralho! Levanta já daí, seu bunda mole. Se não levantar até eu contar até três, te encho de porrada. Aí, sim, você não vai se levantar mesmo - Lontra dá gargalhadas e pega Betinho pelo braço. Levanta-o. Vão juntos até a esquina.
Lontra
Vamos lá...Ânimo animal.
Betinho
Tá bem eu vou Lontra. Mas agora solta o meu braço que tá doendo.
Lontra
Betinho, meu irmão, tá vendo aquele carro ali. Tá vendo? É nosso. Vem comigo.
Betinho
Você vai roubar um carro, Lontra?
Lontra
Claro. Ou você quer que eu ande a pé por aí. A pé a gente não pega nem gripe. Além disso, tem umas gostozinhas louquinhas pra dar uma volta de carro com o lontrinha aqui.
Betinho
Tô morrendo de medo, Lontra.
Lontra
Puxei carro pro Paraguai mais de 10 anos e nunca caí.
Betinho
Mas tem gente nele, Lontra.
Encostado no carro um casal de namorados trocando beijos e amassos.
Lontra
Ô figura, você mesmo, aí, vai desencostando do meu carro... Não tá vendo que você pode amassar ele, ô babaca!
O rapaz
Mas esse carro é meu...
Lontra
Era. Tá entendendo: era. Agora é do Lontra. Tá ligado no nome: Lontra. Nunca se esqueça desse nome, falou babaca. O Lontra aqui é da pesada, falou seu bosta.
O rapaz
O carro é do meu pai.
Lontra
Então o carro é do papai. Tá vendo Betinho. Não te falei. "O carro é do papai". Era do papai, meu chapa. Era, tá ligado. Agora é nosso. Do Lontra e do meu amigo Betinho, garoto gente fina, meu irmaõzinho aqui, entendeu? Fala pra ele, Betinho, fala pra ele...
Betinho
Deixa pra lá, Lontra...Deixa pra lá...Eles são gente fina
Lontra
Gente fina, ô caralho. Lontra puxa a namorada do rapaz. Vem cá, boneca, vem cá com o Lontrinha. O Lontrinha não vai fazer mal pra uma delícia como você, não, o Lontrinha é um cara legal, só vai fazer uns carinhos. Dá só uma olhada pra ela, Betinho. Olhe bem. Você já viu algo mais bonito que isso na sua vida. Olha a barriguinha dela, olha o umbiguinho. Olha a bundinha dela. Dá uma viradinha aí, boneca, pro meu irmão Betinho poder ver melhor a sua bundinha...
O rapaz
Tire a mão dela!
Lontra
Olha, aí, a do rapaz...Qual é a dele em Betinho? Querendo arrumar confusão com a gente, pessoas de bem. Não vou fazer nenhum mal pra boneca aqui, não. Só um sarrinho...O LOntrinha é um cara carente...
Lontra agarrou o rapaz pela gravata e deu sopapo na sua orelha esquerda. O rapaz caiu no chão. Um chute nas costelas. Outro na cabeça. Lontra saca do revólver e tira um estilete do bolso e ameaça cortar o caralho do rapaz.
A garota
Não, pelo amor de Deus...Não faça isso...Pelo amor de Deus! - chora
Lontra
Olha, Betinho, a da garota. Defendendo o piroco do babaca aqui. Você nunca viu um caralho de verdade, boneca. Um do bom. O Lontrinha tem um do bom, você ainda vai ver. Se eu e meu irmaõzinho tivéssemos mais tempo nós iamos mostrar a você uma coisa boa e deliciosa. Você ía adorar, posso te garantir. Nenhuma garota reclamou até agora do caralho do Lontrinha. Só que agora, hoje, estamos sem tempo. Dá uma olhada pro meu irmãozinho, dá só uma olhada nele. Tá derrubado, não? Então, estamos indo dar um trato nele. Você quer ir com a gente?
A garota
Não, por favor
Lontra
O que é isso. Tô em missão de solidadiedade. Onde você mora? Qualquer dia dou uma passadinha lá pra devolver o carro..e você sabe, né, nós poderíamos fazer um nenenzinho, ein, o que você acha?
A garota
Deixe a gente ir embora. Pode levar o carro. Mas por favor, nos deixe em paz.
Lontra
Eu tenho um pensamento que é o seguinte: O mundo é pequeno e as noites são longas.
Deu mais um chute no rapaz, que já estava sangrando muito. Empurrou a garota para o muro e deu um beijinho em seu pescoço e tirou os peitinhos opra fora.
Lontra
Olhe pra isso, Lontra, dois papaias...que delícia. Quer dar uma chupadinha Betinho. Vem cá. Ela deixa
Betinho
Não. Deixa ela Lontra, Deixa ela
Lontra
Se você não quer, tudo bem.
Entraram no carro. Deu partida.
Lontra
Tchau gatinha, tchau. Até outro dia. Não se esqueça de dizer pro seu amiguinho ter mais cuidado. Qualquer dia ele pode ficar sem o piroco e vai ter que virar viado. gargalhada.
Dentro do carro.
Lontra
O Betinho, como é que você virou um mendigo, ein?
Betinho
Deixa pra lá. Não tô a fim de deprimir ninguém com o espetáculo da minha miséria.
Lontra
Que papo é esse, Betinho. Me conta. Foi mulher, num foi? Mulher é uma bosta. Gosto de mulher, mas só pra trepar...Isso sim. Essa história de ficar grudado num rabo de saia não é comigo.
Betinho
Foi uma porrada de coisa junto. Trabalho, mulher, família. Tudo em cima de minha cabeça. Não aguentei. Caí fora.
Lontra
Mas virar mendigo...
Betinho
Não tive muita escolha. No começo até que deu pra descolar algum, fazendo uns biscates, trabalhando de garçon, essas coisas... Mas depois a coisa apertou.
Lontra
Betinho, vou te falar uma coisa: Nós que viemos lá da quebrada, o nosso é negócio é o crime. Sacou? roubar de quem tem muito. Tem muito bacana por aí montado no dinheiro. Eu vou trabalhar? Pra ganhar salário de fome...
Betinho
Não tenho coragem. Acho que nunca vou ter coragem.
Lontra
O difícil é fazer o primeiro serviço. Dá uma tremedeira. Um nervoso do diabo. Depois a gente acostuma.É mole. Dá até um friozinho gostoso na barriga encostar um canhão na cabeça de um granfino.
Betinho
Sempre fui medroso. Até na escola, aquela bosta de escola que nós estudamos, lembra? nunca aprendi nada. Trampo só pintou porcaria...Desisti.
Lontra
Que isso, irmão? Ânimo rapaz. A gente vai dar um jeito nisso aí pra você. O lontra aqui vai tirar você da merda. Pode crer. Pode confiar no seu irmão Lontra.
Betinho
A vida na rua é legal. Tenho alguns amigos. São caras batutas... Tou levando na maresia. Tomando umas biritas aqui, batendo um papo ali e assim a vida vai passando, essa merda!
Lontra
Mas mulher que é bom nada.
Betinho
Não penso mais nisso.
Lontra
Virou viado, por acaso. Tá dando o lordo por aí, Betinho?
Betinho
Que isso Lontra?
Lontra
É aqui o meu barraco. Chegamos.
Pararam o carro. Ficaram conversando um pouco.
Betinho
Tá numa boa, em Lontra?
Lontra
Numa boa, ô caralho. Ainda vou fazer uma mansão aqui na área. Você vai ver. Tenho planos, irmão. E tá pintando um lance super massa...Depois te conto. Vai dar pra levantar muita grana. Essa casa tá derrubada, que nem você. Passa a mão pela cabeça de Betinho.
Betinho
Ce tá chorando de barriga cheia.
Lontra
Betinho, o banheiro é ali, naquela porta, vai lá e toma um banho legal. Vou te arrumar uma toalha.
Betinho
Banho? Bicho, faz mais de um mês que não sei o que é isso.
Lontra
Dá pra perceber.
Betinho
Vou lá.
Lontra
Vou colocar um som na caixa. Escorpius, um grupo gringo. Em homenagem aos escorpiões que moram aqui no barraco. Ah, vê se corta essa barba nojenta. Tem aparelho atrás do espelho. Vê se dá um trato nesse visual. Lava bem essa cabeça. Vou dar uma tozada legal nesse cabelo, você vai ver.
Betinho
Não vai me falar que você é barbeiro também?
Lontra
Você vai ver. Tô com as manhas de um corte aí que vai arrepiar.
Betinho tomou banho. saiu do banheiro. Cam a barda cortada.
Lontra
É isso aí, meu irmão...Tá com cara de gente.
Betinho
Chuveiro massa, o seu, em Lontra?
Lontra
Senta aí na cadeira. Vamos cortar essa crina perebenta.
Betinho
Olha lá, em Lontra. Olha lá o que você vi fazer com essa tesoura.
Lontra
Deixa comigo. E aí que achou do sabonete? Lux, irmão. Tem uma gostosa que faz a propaganda na tv, irmão, uma gostosa!!! Qualquer dia, se marcar no caminho do Lontrinha, meto e ferro nela. (risos) O Lontra não dá moleza pra ninguém!
. Depois de algum tempo. Betinho, vestido, cabelo cortado, e Lontra na frente de um bar bacana.
Lontra
Agora que você tá bacana, vamos tomar uma nesse buteco?
Betinho
E grana? Tô liso.
Lontra
Não esquenta a cabeça. Deixa com o Lontra que ele resolve essa parada. Vamos lá.
Betinho
Olha lá, em Lontra... Vê o que vai fazer, ein, irmão.
Lontra
Você não tá conhecendo mais o seu irmãozinho LOntra, Betinho. Pirou é? Deixa pra mim.
Betinho
Tá legal. Vamos tomar uma cana.
Lontra
Que cana o quê, Betinho! Cana é bebum de pobre. Vamos tomar um chopinho bem gelado e ver as gostosas. Tem cada uma aí na área, irmão. Você vai pirar.
Betinho
Vamos, vai.
Lontra
Betinho, vou te contar uma coisa que aprendi nesses anos todos.
Betinho
Fala, Lontra.
Lontra
Betinho, irmão, meu avô dizia o seguinte e tô com ele e não abro: "a vingança faz parte da justica". Tá ligado? Vamos beber todas e cair fora. Se alguém entrar numas, eu meto o canhão na cara do filha da puta. Lontra mostra de novo o revólver na cintura. Betinho treme de medo.
Betinho
Mas cê vai sair com isso aí, Lontra?
Lontra
Claro, né Betinho, que cê acha? É o meu brinquedinho pra limpar otário.
Betinho
Tá carregado, Lontra?
Lontra
Claro que tá. Se já viu o Lontra aqui andar com brinquedinho decarregado no bolso? Tem seis balaços. Se vagabundo marcar, leva chumbo no rabo.
Betinho
Cuidado com isso. Não deixa ninguém ver, em Lontra. Se não estamos fritos.
Lontra
Chega de papo. Ô gançon, traz dois chopes gelados, estupidamente gelados, aqui pro Lontrinha
Betinho
O Lontra que som é esse que vem lá de dentro. Alto pra caralho.
Lontra
É uma boate, Betinho. Você já entrou numa dessas antes?
Betinho
Não nunca...Lá na vila não tinha.
Lontra
Então com o Lontra aqui você vai em muitas ainda.
Betinho
E paga na entrada ou na saída?
Lontra
O Lontra não paga nem na entrada nem na saída.(risos)
Betinho
Então como é que vai ser?
Lontra
Deixa comigo.
Chegaram os chopps.
Betinho
E eu, tô bacana...A roupa ficou em cima?
Lontra
Ficou supermassa.
Betinho
O meu pé tá doendo um pouco.
Lontra
Também, esse casco
Betinho
Meu número é 41
Lontra
E desde quando sapato de pobre tem número?
Betinho
Quero ver só amanhã.
Lontra
Tá cheio de bacana dono da grana no pedaço. Vamos ficar numa boa, Betinho, numa boa. Amanhã a gente compra um "but" novo pra você irmão.
Betinho
Tá uma delícia o chopp.
Lontra
Chopp é bebum de bacana.
Betinho
Lontra, será que eu vou conseguir descolar uma garota?
Lontra
Qualé, Betinho? Até agora você não tava a fim de nada... O que rolou?
Betinho
Não é nada disso, Lontra. Eu não sei se consigo.
Lontra
Claro que consegue. Com o Lontra em campo não há placar em branco. (risos)
Betinho
Quero só ver
Lontra
Daqui a pouco a gente sobe. Tem cada gostozinha lá dentro, dançando, balançando, esfregando aquelas bundinhas lisinhas... Você vai ver Betinho.
Betinho
Eu acho que perdi a manha de como se faz pra chegar numa mina.
Lontra
Sai dessa, malandro. As minas acreditam em tudo. É só chegar e ir dizendo que acha elas lindas, que tá apaixonado... não dá outra. Mulher é tudo otária.
Betinho
Tô nervoso.
Lontra
Larga a mão de ser bunda-mole, Betinho.
Betinho
E o caralho, será que ainda levanta?
Lontra
Bicho, a hora que você ver aquele rabão rebolando na sua cara, aquele perfume, aquela bucetinha quentinha ... aquilo levanta até defunto.
Tomaram mais uns três chopps cada um e entraram para a outra área do bar. Uma danceteria.Cheia de gente. Muitas garotas.
Lontra
Tá vendo, Betinho. Num te falei? Dá só uma olhada nessas bundas, meu irmão, dá só uma olhada, Betinho.
Betinho
Vamos tomar uma coisa mais forte, LOntra.
Lontra
Tá cagando na calças já Betinho? Ainda nem começou a festa. Vamos tomar uma lá no balcão. Vamos lá.
Betinho
Com coragem, antecipando Lontra. Ei amigo o que você tem de bebida forte, aí?
Lontra
Vamos beber um vodka, Betinho, é maneira.
Betinho
Então vê duas vodkas no capricho pra nós dois.
Pegam a bebida e vão perto da pista.
Lontra
Tá vendo todas essas bundas aí, Betinho? Pra mim não passa de possibilidades.
Betinho
O quê?
Lontra
Possibilidades, Betinho, tá surdo?
Betinho
Mas o que que você quer dizer com isso?
Lontra
Significa que eu vou comer qualquer uma. Pra mim não faz diferença. Aqui, irmão, só tem coisa fina. Aqui não tem bagulho. E se não der na boa, vai na marra...
Betinho
Você é um cara muito esperto, LOntra.
Lontra
Burro eu não sou, tá ligado, Ô Betinho.
Betinho
Preciso aprender. Fiquei muito tempo na sargeta..
Lontra
Ficou porque quis. Porque é um bunda-mole.
Betinho
Deixa pra lá, LOntra. Agora não é hora...
Lontra
Vamos descolar uma mesa...É mais fácil pra arrastar as gatas.
Betinho
Vamos lá.
Sentaram-se numa mesa. Pausa.
Lontra
Ei, aí, gatinha, você mesmo de minissaia, ei, venha até aqui...O lontrinha quer levar um papo contigo. Vem cá, o Lontrinha é gente fina...
A garota
Sai pra lá seu...
Lontra
Essa mina vai se fuder comigo, viu betinho. Tá pensando o quê?
Vai dispensando o Lontra assim. O Lontra.
Betinho
Vai lá falar com ela.
Lontra ( Para a garota, quase abraçando-a)
Ei, garota, não faça isso com o Lontrinha aqui, não...Vem cá...O lontrinha achou você linda...A gatinha mais linda dessa boate...Pode ter certeza...
A garota
Sai pra lá, cara. Não tô a fim de nada contigo. E Vê se não marca se não meu namorado te quebra a cara.
Lontra
Ah, é assim, então...Você tem namorado, ein? E daí? E o Lontrinha como é que fica?
A garota
Tenho...E se ele te ver aqui me pentelhando vai te dar um cacete!
Lontra
Vamos ver, então. Sabe com quem você está falando, ô piranha? Com o Lontra, sacou e o Lontra não vai deixar barato essa desfeita, não.
A garota
O Ricardão é faixa preta em judô, seu moleque!
Betinho
Vamos embora Lontra.... Vamos embora... O cara vai arrumar pra nossa cabeça, Lontra.
Lontra - Rindo -
Betinho, essa piranha não sabe com quem está mexendo... Vai si fuder...Ela e o faixa-preta
Ao sair, LOntra bateu a carteira de um rapaz na fila do caixa. Pagaram a conta. Do lado de fora da boate.
Betinho
Como foi que você conseguiu aquela grana, Lontra?
Lontra
Você tá com o Lontra, irmão...Fica frio.
Betinho
Lontra, você não conhece outro lugar legal, pra gente descolar as minas?
Lontra
Que nada, Betinho. Vou fuder aquela piuranha. Aliás, nós dois vamos comer fuder aquela bundinha. Só pra largar a mão de ser filha da puta!
Betinho
E o Ricardão?
Lontra
Tá morto. O ricardão, Betinho, o faixa preta, tá morto, Betinho.
Betinho
Você vai matar o cara, Lontra?
Lontra
Esses filhos da puta acham que só porque entram numa bosta duma academia onde só tem viado e já pensam que são os bons. Com o Lontra o negócio é na bala! Você vai ver o cara querer entrar numas comigo. Vou só me defender.
Betinho
Vamos embora, Lontra. Deixa pra lá.
Lontra
A vaca nem olhou aqui pro Lontra, Betinho. Vai se fuder. Vou comer aquele rabinho dela... e sem vaselina - gargalhadas.
Depois de umas duas horas. O bar fecha as portas. As pessoas começam a ir em direção ao estacionamento. Shirlei e Ricardão são um dos últimos a chegarem. Lontra e Betinho os esperam na entrada, escondidos.
Betinho
Lá vem eles, Lontra.
Lontra
Tô vendo, Betinho. Com o LOntra em campo não há placar em branco, Betinho. Fique ligado.
O rapaz, meio embriagado, mas muito forte, alto, enfia a chave na maçaneta do carro. Abre a porta. Shirlei entra. Lontra se aproxima.
Lontra
Oi boneca, tá lembrada de mim?
Shirlei
Ricardão esse é o cara que me agarrou la na boate.
Ricardão
Então é esse filho da puta.
Lontra
Vem aqui pra fora seu viadinho
Ricardão
Vou te arrebentar
Lontra
Vem
Ricardão sai do carro. Lontra o espera com o canhão nas mãos.
Shirlei
Arrebenta ele Ricardão.
Ricardão
Vou quebrar esse cara, baby, espera só um pouquinho
Lontra
Prepare pra morrer seu granfino filha da puta. Você mexeu foi com o Lontra, seu puto.
Lontra, porém não atira. Apenas aponta o revolver para ele. Chama Betinho.
Ricardão
Não atire... Não atire...
Lontra
Entre no carro. Vem aqui Betinho. Entra lá atrás.
Shirlei
O que está acontecendo, Ricardão. O que tá acontecendo?
Lontra
Não está acontecendo nada, boneca, nada. O seu namoradinho aí, o faixa preta, tá cagando nas calças. Vai rezando porque o Lontra tá nervoso com você depois daquela desfeita lá na boate.
Shirlei
Quem é você?
Lontra
Eu sou o Lontra, Garota, o Lontra!
Betinho
Deixa eles, Lontra...
Lontra
Cala essa boca, você, aí, também
Ricardão
Aonde você vai nos levar?
Lontra
Toque para o Carvalho, depressa, seu filho da puta!
Shirlei O que você vai fazer com a gente...L....ontra?
Lontra - Gargalhando -
Com você, boneca, nada, o que é isso? Eu já não te falei que o Lontra é gente fina... Você não acreditou. Não precisava ter xingado o Lontrinha daquele jeito la na boate. Não precisava...
Ricardão faz uma manobra abrupta com o carro. Lontra dá uma coronhada em sua cabeça. Shirlei se desespera. Betinho tenta acalmar todos.
Lontra
Não faça mais isso seu filho da puta!
Ricardão
O que eu fiz?
Shirlei
Pelo amor de Deus, moço, não faz isso com a gente não!
Lontra
Não estou fazendo nada, boneca. Ainda (gargalhada)
Betinho
Deixa eles Lontra
Lontra - Apontando o revólver na direção de Betinho
Quer fazer companhia pra eles lá no cemitério, Betinho?
Shirlei
Deixa a gente, pelo amor de Deus...
Ricardão
A gente não te fez nada
Lontra
Olha aí, Betinho, o machão, o faixa preta, o fortão que ia me quebrar a cara, cagando de medo, olha aí Betinho.
Ricardão
Quanto você quer pra nos libertar?
Lontra
Eu já tenho tudo que quero.
Shirlei
Fale. Quanto?
Lontra
Ah. boneca, não fique ansiosa. Eu tenho umas coisinhas pra resolver com você ainda. Você vai adorar conversar com o Lontrinha agora.
Chegaram no matagal do Carvalho. Lontra deu indicações para que entrassem.
Ricardão
Solta a gente, cara, eu te dou o que você quiser
Lontra
Cala essa boca, seu filho da puta - .
Shirlei - Gritando -
Socorro. Socorro. Solte a gente. Socorro.
Lontra
Cala a boca você também sua vaca!
Betinho
Calma, Lontra, calma
Estacionaram o carro. Desceram.
Lontra
Não te falei Betinho que a gente ia comer essa vagabunda.
Shirlei
Não pelo amor de Deus. Pelo amor de Deus!
Ricardão
Você é louco, cara?
Lontra
Não. A sua namorada é que é uma vaca. Se ela tivesse conversado com o Lontrinha numa boa, eu não precisava fazer isso com você.
Ricardão
Fazer o quê?
Lontra
Isso! Lontra dá uma coronhada na cabeça de Ricardão, pelas costas, que desmaia. Amarra as mãos com o cinto. Pega shirlei pela cintura.
Shirlei
Não. Não. Você não é humano...não tem sentimentos
Lontra
Claro que tenho...
Betinho
Você matou o rapaz, Lontra! Matou!
Lontra
Ainda não, Betinho. Ainda não.
Shirlei
Pelo amor de Deus!
Lontra rasga a camiseta de Shirlei. Os seis pulam pra fora. Ela grita. Ele tira toda a roupa dela.O farol ilumina o seu corpo escultural.
Lontra
Olha que beleza Betinho...
Shirlei
Não!Não! Pelo amor de Deus, não faça isso comigo, não, por favor...!
Lontra
Vem aqui com o Lontrinha. Não precisa ficar com medo. O Lontrinha não vai machucar você. O Lontrinha é gente fina... O Lontrinha é um cara legal...Rindo. Lambendo os beiços.
Betinho
Como ela é bonita em Lontra?
Lontra
Eu não te disse? Você conhece alguma garota mais gostosa que essa?
Betinho
Não machuque ela não ...
Lontra
Eu nunca machucaria uma coisinha preciosa como essa. E além disso, ela é toda nossa, Betinho.
Shirlei
Não por favor. Vocês são uns animais!
Lontra
Não são dos animais que as mulheres gostam mais. Homem forte, musculoso...Então...Tá aqui o Lontrinha, que não é muito musculoso, mas tem um senhor de um caralho.
Shirlei
Não, por favor.
Betinho
Eu não posso fazer isso, Lontra, não posso... deixa ela ir embora...
Lontra
O que é isso? Se não for assim, você nunca vai comer coisa igual. Você é pobre cara. E pobre, brodi, quando come alguém... é bagulho...
Betinho
Não posso. Não tenho coragem
Lontra
Vem cá, boneca, faz uma chupetinha pro Lontrinha, faz... Dá uma lambidinha no caralho delicioso do Lontra, vem... você vai ver como é bom, vem?
Shirlei
Tenho nojo de você seu animal!
Lontra
O que é isso? Vem aqui fazer um carinho no cacete do Lontrinha, vem?
Shirlei
Sai pra lá seu filho-da puta!
Lontra
Filho da puta não, sua vaca! Você nem conhece a minha mãe, aquela fudida, a dona conceição, fudida! Dá uma porrada no rosto de Shirlei. Derruba ela no chão e a estupra. Ela grita. Não adianta. Depois de alguns minutos, Lontra, saciado, se levanta. Shirlei fica deitada no chão.
Betinho
Vamos embora Lontra.
Lontra
Calminha, aí, meu irmão, deixa o Lontrinha acabar com com esse filho da puta...esse burguezinho faixa preta de merda.
Betinho
Não faça isso, Lontra.
Lontra
Claro que vou fazer. Você acha que eu vou dar mole pra vagabundo?
Lontra dá um tiro na cabeça do Ricardão e um na cabeça da Shirlei.
Lontra
Vamos Betinho. Já me diverti bastante hoje.
Betinho
Vamos nessa...
As luzes se apagam.
De manhã, na casa de Lontra.
Betinho
Você matou aqueles dois, Lontra. Estamos fudidos. A polícia va cair no nossa cola, Lontra.
Lontra
Vai cair nada. A polícia é um bando de merda. Esses caras não pegam ninguém. Além de tudo, como eles vão saber que fomos nós, Betinho. O Lontrinha aqui não deixa pista, meu irmão. O Lontrinha é profissional.
Betinho
Tou com medo
Lontra
No começo é assim, Betinho. Depois, a gente se acostuma.
27 outubro 2009
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